Levamos nos genes uma história lendária com 6 milhões de anos, a nossa última avó primata dando de mamar num peito à nossa mãe humana, e no outro à sua irmã chimpanzé.
Fotografia de Pedro Sena Marcos (“Pedro, esta deve ser a foto mais dramática que alguma vez tive! Por causa dela vou pensar em escrever um livro sobre memórias da vida e fazer dela capa, com o significado de ter sido tirada por um grande companheiro de viagem!!! Grande abraço”).
Um homem velho (mais de 60 anos) observa uma mulher jovem (menos de 30 anos) com um filho ao colo. Pela idade, ela podia ser sua filha, o bebé podia ser seu neto. O homem é branco, a mulher é negra. Ela olha descontraída o horizonte, ele olha pensativo para ela. Ela nunca saiu daquele lugar. Ele anda freneticamente a correr mundo como se fosse morrer amanhã. Ele pergunta-lhe: és feliz? Ela responde-lhe: não te entendo! Ela estende-lhe a mão, faz lhe um sinal, e leva-o à sua tribo…
Os Mursi são uma das tribos mais guerreiras do vale do Omo, que desagua no lago Turcana, ao sul da Eitópia, na fronteira com o Quénia. O combate em duelo entre adolescentes é o seu ritual ancestral de iniciação dos homens. E até hoje têm a guerra como dia a dia. Vivem armados para defender o seu território, que o estado etíope e a comunidade internacional querem domesticar como Parque Nacional. Para chegar à tribo temos de passar por um controle de fronteira, com homens Mursi fardados de camuflado e metralhadora inspecionando o nosso autocarro. Um dos soldados senta-se no banco da frente e leva-nos por uma longa estrada de terra batida, isolada por entre a mata e a savana, até à tribo.
Esta região em redor do lago Turcana é o lugar da terra onde tudo indica que a humanidade nasceu. É cemitério comum de hominídeos australopitecos desde há 4 milhões de anos, e de diferentes espécies de homens de há 2 milhões de anos para cá. O Menino de Turcana, o mais perfeito fóssil de homo eretus jamais encontrado, morreu nas margens do lago há 1,5 milhões de anos. Há 10 mil anos, ou seja, agora, as mesmas margens amortalharam num só lugar centenas de crânios e corpos decepados, que se matarem numa batalha entre tribos vizinhas, homos sapiens como nós.
Alguns de nós saíram desta terra há 2 milhões de anos. Levamos nos genes uma história lendária com 6 milhões de anos, a nossa última avó primata dando de mamar num peito à nossa mãe humana, e no outro à sua irmã chimpanzé. Deixamos enterrada mais a norte, no deserto de Afar, a nossa avó etíope, Lucy, que morreu há 3 milhões de anos, parece que morta por cair da árvore de onde colhia os frutos, e que hoje jaz no Museu Nacional da Etiópia em Adis Abeba. Evoluímos em diferentes direções e espécies, adaptando-nos a diferentes ecossistemas, desde o calor dos trópicos ao frio dos círculos polares. Aprendemos a andar bem a pé, a caçar em grupo, a fazer armas, a usar o fogo.
Cristalizamos finalmente no homo sapiens, a nossa espécie, há 200 mil anos. Começamos a desenvolver uma linguagem única, capaz de falar de coisas que os nossos olhos não vêm, que os nossos ouvidos não ouvem, que as nossas mãos não palpam. Há 70 mil anos descobrimos os deuses que criaram as nossas tribos. Há 12 mil anos deixamos de ser nómadas, começamos a parar, a cercar terras, a domesticar animais e plantas. Devastamos as florestas e dizimamos os animais selvagens, de outras famílias ou mesmo de primatas como nós. Extinguimos todas as outras espécies do género humano. E até nos enganamos muitas vezes e escravizamos seres da nossa própria espécie, só porque tinham cor diferente da nossa, ou simplesmente porque lhes ganhamos na guerra.
Hoje uma jovem mulher que ficou em África reencontra um homem velho que voltou da Europa. Ele é mais velho do que ela, correu mais mundo, tem os filhos criados, vai morrer mais cedo. Por isso ele pensa mais no sentido da vida, numa tal coisa a que chama de felicidade. Ela tem de sobreviver e criar os filhos. Mas são seres iguais, as diferenças que os separam são irrelevantes para o relógio da terra. Se mil anos forem um dia, a vovó Lucy morreu há 10 anos, somos sapiens há 200 dias, rezamos desde há 70, e tornamo-nos agricultores na semana passada. Só que estes últimos dias / horas / minutos / segundos têm sido alucinantes, para ele que partiu, para ela que ficou, para todos os humanos que chegaram até aqui. Há 5 dias começaram a crescer impérios por toda a terra. Há 2 dias surgiu um império muito forte aqui ao lado, a norte, o império de Axum, origem da Etiópia. Foi o segundo a converter-se a uma nova religião, o cristianismo, a seguir aos arménios e antes dos romanos. Hoje mesmo, há meio dia, chegaram de longe cristãos portugueses para ajudar os etíopes, irmãos na fé, a lutar contra os vizinhos muçulmanos turcos, outra religião e outro império.
Lalibela, a Jerusalém de África, aqui a norte, tornou-se a capital religiosa do único império cristão africano. Há mil anos, um rei visionário, Lalibela, inspirado por Deus em sonhos, iniciou a construção de um conjunto de catedrais que hoje são únicas. Nascem de cima para baixo, recortando as rochas, como se anjos pedreiros tivessem descido do céu para esculpir na terra o sinal da cruz.
Quando Jerusalém passa a ser dominada pelos muçulmanos, os cristãos do Médio Oriente fizeram de Lalibela o seu lugar sagrado de peregrinação. Hoje guardam, parado no tempo, um dos cultos mais antigos da tradição cristã. Nas suas entranhas de claustros sombrios, atravessadas por correntes de ar, esvoaçam as vestes de monges e fiéis, sempre brancas como as dos anjos, uma evocação permanente do sudário de Jesus.
São ortodoxos coptas, culto originário do Egipto dos primeiros anos da era cristã. Talvez por terem sido sempre uma minoria, primeiro entre adoradores dos deuses antigos, depois face aos discípulos do novo profeta Maomé, estão muito mais próximos das tradições originais dos cristãos primitivos, do que dos novos cristãos empoderados pelo império romano.
A Etiópia de hoje é um paradoxo da civilização. Guarda, talvez na pureza máxima, as tradições mais antigas dos vencedores da história. Dos sapiens em que nós todos nos tornamos. Dos cristãos, que vêm governando os impérios mais poderosos da terra. Mas é muito pobre, é uma das nações mais pobres do mundo. Lalibela, fora as catedrais, é um povoado miserável de casas de blocos com telhados de zinco. A mulher Mursi que encontramos à borda da estrada é uma mendiga que estende a mão quando a fotografam.
Na tribo dela, convenceram-na ainda menina que ficava linda com um disco de barro alargando-lhe os lábios. Há quem diga que na verdade era para evitar que a levassem como escrava para os impérios vizinhos.
Como era bonita, vinha para a estrada encantar turistas e levá-los a visitar a tribo. Deixavam dinheiro bom para comprar armas e telemóveis. De dote, quando casou, rendeu ao pai 30 cabeças de gado, e uma kalashnikov que o sogro trocara por outras 30 aos senhores da guerra no Sudão do Sul. A partir daí deixou de ter sonhos e passou a ter filhos.
Desde que foi mãe compreendeu que a beleza para casar é efémera. Agora o que conta é ter o peito cheio de leite quando os filhos nascem. O disco nos lábios tira-o para descansar a face. Na cabeça já não quer carregar o peso dos adornos que a faziam suar. Afinal, na tribo, não lhe pedem mais que encante turistas. Agora, mais velha e desfigurada, vem para a estrada ver quem passa, como sempre fez, sem pensar no tempo.
Ele, ao contrário, força o tempo e o espaço. Olha para ela e tenta vê-la mais jovem. Vê-a como a mãe Lucy cruzando as eras, a mãe Eva da nossa humanidade. Como é etíope, talvez já seja cristã. Pôs no seu programa ir a Adis Abeba, no final da viagem, ajoelhar no seu túmulo, e rezar. Rezar por ela, por ele, pela humanidade nestes últimos dias. Pedir que ela interceda junto de Deus, de todos os deuses, no céu, com diamantes, por nós (1).
Fotografia da Wikipédia
Vale a pena vir aqui para termos a consciência vivida do que somos. Se morrer é regressar às origens, bem podemos viajar para morrer na mãe Etiópia.
Adis Abeba, novembro de 2017
Paulo de Lencastre
Nota: trouxe para a Etiópia um livro que me está a marcar muito, o Sapiens de Yuval Harari, professor de história da Universidade Hebraica de Jerusalém. Terminei de o ler e recomecei-o no dia seguinte, com o lápis sempre na mão a sublinhar detalhes e a fazer raciocínios. Este texto está muito influenciado pela forma de Harare olhar a história do mundo e dos homens. Impressiona ver que nós, os humanos atuais, com as nossas religiões e os nossos impérios, somos um detalhe ínfimo na história da terra. Sinto essa pequenez na tabela abaixo, que venho calculando a partir do Sapiens convertendo os milhões de anos do universo em dias e anos da nossa curta vida. Como somos tão pequenos, e provavelmente tão fugazes, não sei se o verdadeiro Deus do Universo vai sequer reparar no que andamos a fazer por aqui. Mas à nossa pequena escala, no tempo que a história nos destinar, não convinha que deixássemos a terra pior do que a encontramos.
Cronologia da história do mundo e dos homens feita a partir do livro Sapiens de Yuval Harari (2011).
(1) Nota do editor: referência à música "Lucy in the Sky with Diamonds" dos Beatles.
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