A afilhada fitou com curiosidade o seu rosto pensativo. Aqueles olhinhos ingénuos de 4 anos iriam lembrar-se dele quando fossem grandes? Pepe comoveu-se e chorou de alegria a olhar para ela. Como não sabia rezar, comprava assim a eternidade.
Sexta-feira, 9 de dezembro de 1960. São mais uns anos da Joaninha. O tempo passa rápido nesta nossa idade. Pepe conseguira deixar o consultório no Chiado mais cedo, ainda passou na Benard a avisar os amigos. Foi buscar o fiel carocha preto à garagem, subiu a casa na Avenida da Liberdade, onde a modista deixara o novo vestidinho com as medidas que a D. Cláudia tirara às escondidas da Milú, e estacionou no Jardim da Parada em Campo de Ourique.
No pequeno apartamento da Rua Infantaria 16, Maria Emília, a sua Milú, preparava o jantar. Adorava a sobrinha, réplica no nome e agora na idade da sua irmã mais nova, que também adorava, morta de repente com uma nefrite sem se casar. A Milú era o seu porto seguro na geração mais nova. Casara com o José Paulo que também lhe inspirava confiança. E agora vinham os filhos, na verdade os seus netos. O Paulo, o mais velho, já ia em 5 anos, ficou afilhado da sua irmã Olímpia e do avô paterno Lencastre. A Joana, a fazer hoje 4 anos, era a sua afilhada, o seu “torrãozinho de açúcar”, a sua perdição. E agora a Maria pequenina, a deixar de ser bebé, com 2 anos, uma linda moreninha, a puxar mais para o lado Lencastre do pai.
Abel, o criado do Douro, homenzarrão alto de avental branco, um gigante infantil vindo da Sanradela pela mão do cunhado Mateus, entretinha os meninos no quarto com o “lindo”. Era um espelho de bolso, redondo, que à noite, voltado para a lâmpada do quarto, se transformava em lua a passear as paredes, e fugia para o teto quando a tentavam agarrar. Era bem mais mágico que a D. Cláudia, a percetora lisboeta de Penamacor, que desaparecia ao fim da tarde para a igreja entregando-lhe as crianças. Uma “rata de sacristia” para a velha Virgínia, que não tolerava que a solteirona pusesse as missas e demais devoções à frente dos seus meninos.
Foi ter com a Virgínia à cozinha, que tinha vindo fazer o jantar. O Abel na cozinha só dava para o dia a dia. Pescou-lhe como sempre um filete, com o Paulinho pela mão. – Senhor Doutor, tem aqui um bem dourado, como Senhor Doutor gosta. O menino não pode comer, são fritos, a Milusinha tem estas manias. – Gi, também quero! Tem aqui um pequenino, não lhe vai fazer mal, pois não Senhor Doutor? Se a Milusinha não vir… Virgínia tinha a autoridade da ama de leite, com quem a Milú foi dormir no próprio dia do nascimento. E mesmo o Paulinho só hoje existia porque ela pegou na mãe no limite das contrações, e a levou para a clínica de São Miguel onde o Doutor Castro Caldas o tirou com o cordão umbilical à volta do pescoço. O Zé Paulo tinha viajado para o Norte no fim de semana, não tinha vindo na segunda-feira, e não fora a Virgínia, instruída por Pepe, e o miúdo tinha nascido enforcado.
Pepe e Virgínia tinham uma relação de amor subliminar. Ela era a mulher mais desejada pelos homens de Provesende. Tinha uma beleza desafiadora rude de cigana. O primo Zé Pinheiro, historiador erudito da terra, dizia que tinha sangue do Garibaldi, que casou com uma portuguesa. Foi para criada da mãe de Pepe, e mais tarde da irmã Olímpia, acompanhando-a nas suas moradas errantes por Gaia e Porto, Coimbra e Lisboa. Em Lisboa conheceu o Dias, polícia loiro, de boa figura, e lisboeta, que tinha o mérito de lhe ter arrancado com persistência o “sim” tardio, e a inteligência de, sempre apaixonado, se deixar mandar por ela sem condições. Ambos sabiam, Pepe e Virgínia, que Pepe era o único homem que a domava, e que Virgínia só a ele reconhecia estatuto e saber para confessar as fraquezas inevitáveis da sua condição humana.
Ainda era cedo para o jantar. Os miúdos, porque era inverno e já anoitecera, andavam atrás do lindo no quarto com o Abel. O Zé Paulo só chegava às 8 horas, tinha reunião dos escuteiros na chefia nacional. A Milú foi comprar à confeitaria as velas que faltavam para os bolos, as 4 da Joaninha e as infinitas dele.
Amanhã fazia 65 anos. Sentou-se no sofá da sala, acendeu um charuto e deixou-se envolver na volúpia da nuvem que subia ao teto. Tinha alguma tosse, mas não queria pensar nisso. Era médico pneumatologista. Revia a vida, a estudar em Coimbra, a dar aulas, o ano em Berlim como assistente, a carreira universitária até 1926. Aí acreditou no Estado Novo e trocou o ensino por uma carreira sólida de médico militar. Aposentara-se como brigadeiro. Mas mantinha o consultório no Chiado, mesmo em frente ao Grandela, onde uma restrita clientela de luxo, especialmente feminina, de há muito que não o dispensava. Uma delas, não havia como, estava mesmo apaixonada. A Virgínia era a exceção popular, mas até ela se aposentara de cozinheira da embaixada da China, e trouxera-lhe um dia a embaixatriz como cliente.
Não quis casar. Geria os amores com facilidade. Evitava compromissos de vida conjugal. O argumento era o grupo de amigos com quem vivia em república de alma coimbrã na Avenida da Liberdade. Eram todos ricos, com lugar para extravagantes. De um deles, obsessivo, contava como caso clínico que deitava água do Luso no radiador do carro.
Doutorara-se em psiquiatria com uma tese sobre os semi-loucos. Distinguem-se dos loucos porque não parecem loucos, disfarçam com desespero a loucura porque têm consciência dela, e por isso são mais desgraçados, e mais perigosos. Podem ser obsessivos, ciumentos, místicos, assassinos, homossexuais, sádicos, cleptomaníacos. A falta de linhas claras – “não há homens absolutamente normais” – e a vida militar levaram-no a dedicar-se a doenças mais concretas, como a tuberculose, as doenças venéreas, e o coração. Em pneumatologia, a sua especialidade, teve o nome nas enciclopédias pela invenção de um aparelho portátil para os médicos fazerem o pneumotórax artificial ao domicílio dos tuberculosos. No caso dos pobres, sem posses nem assistência para serem internados em sanatórios, era o tratamento possível num calvário de tosse, febre, magreza, cansaço, e solidão na divisão mais recôndita da casa, onde comiam em prato próprio, e onde até o beijo, empestado, lhes era proibido.
Procurou juntar, na ciência e na vida, a erudição com a simplicidade prática. Para os soldados escreveu um folheto de bolso onde o camarada amigo, que lia as cartas de amor e da família, também podia soletrar ao analfabeto os conselhos essenciais sobre doenças venéreas, tuberculose, alcoolismo, educação física e higiene do corpo. Sobre doenças venéreas, a sua principal preocupação militar, sabia que o melhor conselho era muito mais a minuciosa higiene nos amores fortuitos e mercantis do que a castidade extraconjugal.
A profissão tornara-o complacente com os pecados da carne e com as certezas da fé. E o tempo ia-lhe mostrando a precaridade do saber. Muitos dos catalogados semi-loucos passaram a ser normais. O tratamento com a estreptomicina, que domesticou a “peste branca”, levou para o museu das medicinas absurdas o aparelho que inventou. Agora voltava-se para a natureza, e lia tratados de rosas que ensaiava no Fojo.
De permeio editou e deu à luz o Livro de Provesende do seu avô José Augusto Saavedra. Morrera cedo e de repente com um aneurisma na aorta, sem que antes tivesse publicado o que escreveu sobre a história da sua terra no Douro, e das suas gentes pelo mundo além. É nele que estão guardados os segredos da família. O avô José Augusto era neto e ouvira em direto as histórias da avó inglesa Josefa Neville, que recebera o Wellington na Casa do Fojo, e do avô português José Saavedra da Casa da Praça, que por ele combateu nas campanhas peninsulares contra o Napoleão. Para Pepe, os trisavós Josefa e José eram ícones, foram eles que, ao casarem no Fojo, uniram as duas grandes linhagens da família num só destino.
Tinha feito no ano passado o testamento. O herdeiro era o sobrinho Jorge. Tinha 30 anos, andava pelo Chile apaixonado por uma menina, mas era muito volúvel. Deixava-lhe o Fojo em Gaia e a Praça em Provesende, com reserva de usufruto à sábia irmã Olímpia, que no fundo era ela que comandava a família. No caso do Jorge não casar e não ter filhos, era o Paulinho filho da Milú quem sucederia.
Com a Milú estava tudo certo. Pelo sobrinho genro, Zé Paulo, tinha alguma proteção paternal. Trabalhava na Câmara de Lisboa. Também tinha estudado em Coimbra, fundara até uma República, a Rás-te-Parta. Era um misto simpático de conservadorismo monárquico e de suave contestação ao Regime. No ano passado tirara-o da cadeia no dia seguinte a ser preso. O nome Lencastre facilitou, o pai era amigo do Salazar. O Zé Paulo tinha sido ingénuo quando assinou uma carta aberta com amigos já conhecidos, intelectuais católicos, a Sofia de Melo Breiner, o Francisco Sousa Tavares, o Gonçalo Ribeiro Teles, o Nuno Teotónio Pereira. Pediam ao Salazar para esclarecer o que se dizia sobre as torturas da Pide. Era para ser em carta fechada, mas acordaram com a notícia num jornal da manhã.
De Salazar pensava bem. Estes meninos novos não sabem o que é a confusão republicana, se não há alguém sério que tome conta do poder. Crescera entre a nostalgia de um grande rei assassinado e a esperança de uma república libertadora dos costumes. Gostou de viver Coimbra nesses anos, quando se matriculou em medicina. Defendia a tradição local e familiar como suporte de uma nação. Mas seguia com interesse as democracias modernas do centro da Europa. Sonhara, sem admitir, que algo de novo pudesse resultar da revolução comunista na Rússia. Acreditara que o nacional-socialismo, que vira nascer na sua bela Berlim de jovem professor universitário, podia ser a síntese perfeita para o século XX. Viveu bem com o Estado Novo, chegou sem dificuldade a brigadeiro. Admitia que o inteligentíssimo Salazar, que conhecera bem de Coimbra, seis anos mais velho do que ele, devesse agora, septuagenário, encontrar uma solução de continuidade para um regime que se tornara demasiado centrado na sua pessoa. Os homens, mesmo os grandes, têm dificuldade em perceber que não são eternos na terra.
Mas não se podia ser imprevidente. E o Zé Paulo tinha essa dose de encanto pelas utopias. Admirava-lhe o rigor ingénuo que levava até ao tratamento das pessoas. Era o único na família que não o tratava por Tio Pepe, mas por Tio José.
Já o sobrinho Jorge era o oposto. Era uma espécie de continuação de si próprio. A mesma bonomia, a mesma sedução. Andava encantado com a Constanza, a namorada chilena que em boa hora o desviou de ir para padre. O culpado era o Miguel, o irmão mais novo do Zé Paulo, um volúvel como o Jorge, a quem contagiara agora com uma lufada mística. E também suspeitava que a Eva fadista, que ele próprio apresentara ao sobrinho numa noite de iniciação boémia, ainda andava em redor do Jorge.
No fundo em quem confiava mesmo era na irmã Olímpia. Feita da mesma massa do pai, tinha-lhe há muito entregue a responsabilidade da gestão familiar. Durante muito tempo tivera também a Mercês, a irmã mais velha, que era fidalga como a mãe. Mas aquela relação com a Alice envenenara tudo. E ainda hoje estava convencido de que fora a Alice que incendiara o Fojo logo a seguir ao casamento da Milú.
Pelo pai tinha admiração, mas não tinha boa memória, e quase não lhe herdara o nome. José Maria de Ascensão, humilde filho de Gaia, andava no seminário quando cruzou o olhar na igreja com Emília, a menina do Fojo. Descobriu barros na quinta e fez uma fábrica. Negociou com os vinhos finos de Provesende e salvou a família da bancarrota fidalga para que a intelectualidade do sogro José Augusto, recém-falecido, a estava a conduzir. Aos filhos, que foi tendo com Emília, disfarçava o seu humilde nome de família no meio da genealogia nobre da mulher. Pepe – José Neville de Ascensão Saavedra – o único rapaz, nunca foi o continuador sonhado. E fazia-lho sentir, com disfarçada ironia, sempre que o filho lhe anunciava os sucessos académicos em Coimbra e Berlim. Que levaram o pai, numa lucidez de gestor, a vender a tempo a próspera Fábrica Cerâmica do Fojo por falta de sucessão viril. “Se a Olímpia tivesse calças…” comentava com mágoa à mulher à noite, no dia da decisão. Emília, apaixonada pelo filho, sorria em silêncio, realizada, porque os genes rudes do marido salvaram a casa sem lhe abafar o requinte.
O incêndio do Fojo em 1955 foi o seu grande trauma. “Se não fosse a Olímpia…”. Depois da morte da irmã, Emília como a mãe, mais nova do que ele e a sua cúmplice na idade e na irreverência, vivera partilhado entre as duas irmãs mais velhas. A Mercês, seis anos mais velha do que ele, solteira, ocupou o lugar da mãe no Fojo quando a mãe morreu. Era igual a ela, a mesma serenidade, a mesma cultura, a mesma falta de convulsões. A Olímpia, muito mais próxima, apenas um ano mais velha do que ele, ficou para continuadora da família. Manteve-lhe a vocação fidalga e rural duriense ao casar com o Mateus de São Jorge em Favaios. Deu sobrinhos netos aos irmãos solteiros. Pepe ficou padrinho do Jorge e da varonia. A Mercês amadrinhou a Milú e o governo da casa.
A Milú foi a causa da desavença. Vivia praticamente com a Mercês no Fojo. Viajavam juntas pela Europa acima, Espanha, França, Suíça, no carro conduzido pela Alice. A Alice era a governanta que tudo organizava, hotéis, garagens, comidas e empregados. Dedos amarelos, fumava mais do que ele. Num fim de férias, a Olímpia sentiu que a filha não estava a ser educada como devia. Tirou-a da Mercês, e das garras da Alice, para a mandar para o colégio interno do Coração de Maria em Guimarães. A Mercês pegou na Alice e saíram do Fojo para construir uma casa na colina do Cais Novo, do lado do Porto, em frente ao rio, que tinha ficado para ela. E Pepe, quando chegou nesse Natal ao Fojo, já não tinha ninguém em casa. Os móveis tinham partido. A casa ficara sem dona.
A Olímpia tomou conta da casa. Estilo mais desorganizado. Como já não tinha a Virgínia, que foi para cozinheira na embaixada da China, pegou na Maria dos Anjos, também de Provesende. Era o oposto. Baixinha, angelical, funcionava como um espanador silencioso do turbilhão da patroa. Seguia-a nas múltiplas casas que iam abrindo e fechando ao sabor dos estudos do Jorge, o menino das duas, na Rua de Costa Cabral no Porto, no Penedo da Saudade em Coimbra, na Praceta de João do Rio em Lisboa. Fora as casas velhas da família, a Praça, que Pepe sempre confiou à Olímpia porque partilhavam terras em Provesende, e agora também o Fojo.
Foi neste turbilhão de vida que anos mais tarde o casamento da Milú foi organizado no Fojo. Mas a Olímpia superava-se quando sentia que era preciso. A Mercês veio de convidada, com a Alice. Era uma raiva contida de ciúmes da irmã. Seis meses depois o Fojo ardia. A Alice foi presa por suspeita de fogo posto. A Mercês implorou ajuda, que nem Pepe, nem a Olímpia lhe deram. Desde aí a Mercês nunca mais falou com os irmãos, até morrer. Pepe, com a casa destroçada, aconchegou-se no Zé Paulo, que lhe trouxe o amigo Fernando Távora, jovem e promissor professor de arquitetura. Restaurou-lhe a casa com rigor histórico nas fachadas, modernidade no interior, e pouco dinheiro, economizado nos materiais e na gestão. A Olímpia, com a casa renovada, transformou-a em definitivo na sede de verão da família.
Este ano fez o luto de um novo trauma. O segundo retalhar da Quinta do Fojo, depois do caminho de ferro no tempo do seu avô, agora muito mais brutal com a autoestrada. No projeto inimaginável do Estado Novo de ligar o Porto a Lisboa por autoestrada, estavam a fazer uma nova ponte sobre o Douro e tinham aberto o primeiro troço, da Afurada até ao Fojo. Pepe conseguira impor a abertura de dois túneis por baixo da autoestrada para não separar a quinta. Mas não conseguira evitar que derrubassem a velha ponte de ferro sobre a linha do comboio, que lhe permitia andar no Fojo como num condado de 30 hectares, agora às portas do Porto. O que seria o futuro?
Sentado na poltrona, o charuto a queimar próximo dos dedos, apeteceu-lhe chorar. Já não iria viver tudo o que se ia passar de seguida. Quem tomaria conta do futuro? Logicamente o sobrinho Jorge. Tinha de ser ele o herdeiro. Mas acreditava mais no sobrinho genro Zé Paulo. Mais velho 10 anos, e muito mais maduro. Filho de um pai que conseguira vencer um trauma igual ao dele quando a casa da família, um exemplar gótico manuelino construída há 500 anos em Braga, foi deitada abaixo para abrir uma rua nova. D. José, sem dinheiro para mais nada, numerou as pedras uma a uma, e amontou-as numa nesga de terra que lhe restou ao lado da capela da casa que sobreviveu. E que lhe abençoou a vida, dando-lhe aos poucos o dinheiro para alargar um pouco a terra e, apertada, reerguer a casa. O filho Zé Paulo guardou-lhe a hereditariedade. Bem vira no restauro do Fojo. Por isso deixou ao Paulinho, neto e afilhado do D. José, o fideicomisso da herança do Jorge. Nem conhecia a figura jurídica, mas o António Araújo, advogado e amigo que lhe sabia a lógica, explicou-lhe, e assim regularam o destino das casas da família por duas gerações de sobrinhos.
E o seu torrãozinho de açúcar? Claro que não podia ficar com o Fojo, nesta genealogia de homens. Mas deixou-lhe um bom terreno na Rua da Bélgica, agora valioso, que ficou separado da Quinta pela autoestrada. Foi buscá-la ao quarto. Tii Pepe… Já lhe falava como uma menina. Estava encantada com a boneca grande, de braços e pernas articulados, de abrir e fechar os olhos, e a dizer mamã e papá, que até chorava quando a apertavam ao colo. Chamava-se mesmo a Encantadora, que era o nome da marca. Combinara com a Virgínia, ela dava à Joaninha a Encantadora, ele o vestido novo às bolinhas vermelhas. Já lhe custava um pouco pegar na afilhada, com a dor no peito que vinha sentindo. A madrinha era a Maria Luísa, do lado Sepúlveda do seu cunhado Mateus, filha única de uma irmã dele e do colega médico, Armando, que tudo indicava iria ficar solteira. Bem lhe podia deixar Crestins, a quinta do pai. Para não falar em São Jorge, a quinta do Mateus em Favaios, que talvez devesse ficar para a Milú, já que a Praça era dele e ia no testamento para o Jorge.
O Tio Pepe e a Prima Maria Luísa com a afilhada Joana (verão de 1958)
A afilhada fitou com curiosidade o seu rosto pensativo. Aqueles olhinhos ingénuos de 4 anos iriam lembrar-se dele quando fossem grandes? Pepe comoveu-se e chorou de alegria a olhar para ela. Como não sabia rezar, comprava assim a eternidade.
Sábado, 9 de dezembro de 1961. Passou-se um ano, o torrãzinho de açúcar faz anos de novo. Já tem 5 anos, Milú decide que pode levá-la hoje a visitar o padrinho doente. O Tio Pepe estava internado no hospital militar de Belém, que ajudara a fundar como centro de tratamento militar de doenças infetocontagiosas. Mas, não se podia dizer, tinha um cancro no pulmão. Era o subdiretor. Os seus colegas médicos trocavam-lhe as radiografias para ele pensar que estava só com uma pneumonia. E o sobrinho Zé Paulo convenceu-o que talvez fosse prudente receber a extrema unção. Pepe olha para a afilhada, ajoelhada na cama ao seu lado pela mão da mãe. Debruça-se para ela num esboço de beijo que as suas forças ainda deixam. Uma lágrima impossível de segurar escorre-lhe pela cara.
Domingo, 24 de dezembro de 1961. Depois de um enterro de um dia inteiro saído da igreja do hospital em Lisboa, despediu-se do Fojo na capela da casa, e o seu caixão ficou guardado numa gaveta das catacumbas da torre jazigo da família no cemitério de Santa Marinha. À noite a família juntou-se no Fojo para fazer a ceia de Natal. O torrãozinho de açúcar tinha no sapatinho um vestido novo, vermelho às bolinhas brancas, presente do Tio Pepe.
Paulo de Lencastre
Gaia, dezembro de 2022