Abrira os olhos no oásis de Garmeh, onde ruas e casas tinham a mesma cor do deserto, como se fossem construções de areia feitas pelos filhos dos deuses numa praia imensa entre a terra e o céu.
“No coração do deserto de Dashte-Kavir, o imenso oásis de Garmeh é uma ode à vida, graças a uma simples nascente que brota por baixo da montanha, onde cardumes de pequenos peixes nadam contra a corrente em busca de alimento. A pequena aldeia, hoje com pouco mais de 200 habitantes que ainda falam o Garmei, um dialeto local cuja origem se perde no tempo, foi outrora um importante refúgio para as caravanas da rota da seda com destino às cidades de Yazd ou Isfahan, como se comprova pelo velho castelo em taipa, com mais de mil anos. Agora, são de outro tipo os visitantes que por aqui passam e quase todos têm como ponto de encontro a casa de @maziaraledavood, artista, músico e sábio de poucas palavras, conhecedor deste deserto como ninguém, que apenas com um simples olhar nos faz sentir a todos parte da família…” (Miguel Judas, Instagram 2023).
Maziar é um gigante físico. Talvez tenha um metro e noventa, e pesa mais de cem quilos. Nasceu no deserto de Kavir, no oásis de Garmeh, no coração do Irão. Tinha doze anos em 1979 quando a revolução dos aiatolas mudou o país, o isolou do ocidente, e o tornou um alvo apetecível do Iraque, mergulhando os vizinhos numa guerra de dez anos, uma das mais sangrentas da história. Pertenceu àquela terrível geração de crianças rapazes que cresceram sabendo que o destino era serem soldados mártires logo que conseguissem carregar o peso de uma espingarda.
Quando chegou a sua vez já a euforia inicial que o novo poder conseguira injetar no povo se havia perdido. Fez-se homem em trincheiras cansadas, com mais de um milhão de corpos mortos de cada lado, donde muitos dos que não morriam saíam decepados, estropiados por balas e bombas, ou a apodrecer pelas armas químicas. Para o Irão, já não havia esperança de vitória. O regime islâmico era demonizado pelos senhores do mundo, americanos e russos. Os mortos e feridos de cada dia eram o fruto macabro do dilema de orgulho dos chefes entre adiar a derrota ou aceitar a rendição.
Maziar tornou-se homem neste inferno. Mal fez dezoito anos foi alistado. Deixou o oásis familiar, que era o seu mundo de menino, para vestir a farda de soldado, receber uma arma de verdade, e partir para a frente de batalha, na fronteira, 500 km a ocidente, para onde o sol se põe. Os 28 meses que passou na frente fizeram dele um homem duro, reservado, de muito poucas palavras, incapaz de falar mais do que o estritamente necessário, capaz de aguentar silêncios rodeado de gente com o olhar fixo no fim do mundo.
Quando saiu, com vinte anos feitos, e retornou a casa, já não conseguia mais olhar para o deserto com um olhar sonhador. Os seus olhos estavam turvos de sangue, os seus ouvidos surdos das bombas, a sua boca seca de medo contido. Mas também ninguém lhe dizia para ficar. A infância estava definitivamente perdida, tinha de ir estudar para Teerão.
Só que em Teerão não conseguiu continuar a estudar. Também a cabeça estava demasiado perdida, incapaz de se focar em abstrações úteis para o futuro. Encontrou alguma paz num mestre ceramista. Reaprendeu aos poucos a olhar para o detalhe, a afagá-lo com os seus dedos, como tão bem sabia fazer com os escorpiões do deserto, e as serpentes, para não o picarem de veneno e ficarem amigos. Abrira os olhos no oásis de Garmeh, onde ruas e casas tinham a mesma cor do deserto, como se fossem construções de areia feitas pelos filhos dos deuses numa praia imensa entre a terra e o céu. Sentiu-se aos poucos um desses filhos… fez-se mestre também. Deu aulas e foi ganhando fama de artista, tornou-se um artista sincrético, misturou a cerâmica com a música, pôs as suas ânforas a ecoar ao som de uma tuba e de tambores.
Conheceu Ariane, um bebé da revolução. Era filha de uma francesa e de um persa, que se encontraram no Teerão cosmopolita do último xá Pálavi e da sua mulher Farah que estudara arquitetura em Paris. Os pais de Ariane são a geração da transição brutal. Eram um jovem casal cheio de sonhos no país mais ocidentalizado do médio oriente. Têm uma filha, o início da eternidade. E logo depois uma revolução religiosa islâmica, a mais radical que até então a história contemporânea conhecera.
O pai de Ariane foi dos primeiros combatentes, Maziar foi dos últimos. Sogro e genro ganharam com o sangue francês das suas mulheres um toque ocidental que os tornou mais livres. Podiam viajar mais facilmente até Paris. Puderam ser observadores estrangeiros da sua própria terra.
Viveram em Teerão alguma esperança, entre o final da guerra e as reformas moderadas do virar do século. Só que, em 2005, com o regresso ao poder da ala mais conservadora do regime, desiludiram-se em definitivo. Podiam ir para Paris. Mas Maziar sentiu um apelo mais profundo. Vinha das entranhas da terra, da água que brota do deserto no oásis que foi o seu ventre. Arrastou com ele a bela Ariane. E aplicou o saber de ceramista a recuperar as casas de adobe da família, e mais outras da aldeia. Foi o pai do alojamento local no oásis de Garmeh. Salvou a aldeia de desaparecer na areia, como muitas outras à volta, desertificadas de gente. Segurou jovens à terra para o ajudarem. Guardou as paredes e a tradição milenar do velho castelo caravancerai da rota da seda.
“Não espere um hotel de cinco estrelas, mas muitas mais no céu do deserto”. Batizou o lugar, no deserto e no site, de “ateshooni” que em garmei quer dizer “encontro à noite à volta da fogueira”.
Hoje passa por dias difíceis. O Irão está envolto numa imagem de medo. Os turistas estrangeiros quase não voltaram desde que a pandemia do coronavírus parou o mundo. No ano passado, ainda no rescaldo da pandemia, com a morte de uma mulher curda às mãos da polícia, o Irão volta a surgir como um país de religiosos facínoras que matam mulheres por não usarem bem o véu islâmico. E agora que deflagrou a guerra na Palestina, o apoio declarado do regime ao terrorismo islâmico torna o Irão o alvo mais que provável das bombas de Israel.
Fotografias do Instagram de Maziar Araledavood.
Mas Maziar resiste. No deserto frugal, ele é o símbolo de uma Pérsia eterna. Que não depende nem de xás nem de aiatolas, nem de religiosos nem de laicos, nem de petróleo nem de intrigas palacianas de guerra e paz. Que reza sem rezar, à volta da fogueira. Fotografa e publica o pôr do sol e os bichos do deserto, raposas, chacais, coelhos, ratos cangurus, e o mortal escorpião amarelo a passear na sua mão.
Fotografia de Miguel Judas.
Tem um cão e uma cadela pastores, meios dos pireneus meios persas, mais cinco camelas de leite, com um macho e três bebés, e uma víbora que ensinou a não morder de veneno os hóspedes. Fuma erva todas as noites, em silêncio, antes de se deitar, com quem está com ele.
Ariane e Maziar.
Garmeh, outubro de 2023
Paulo de Lencastre