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Paulo de Lencastre

O Pescador do Lago de Hara

Updated: Mar 15

Um dia há quinze anos adormeceu na lua e não voltou. Abdul veio com o pai despedir-se. A casa erguida na palafita foi a torre do silêncio que Ahura-Mazda, ou Ormuz-Mazda, o velho deus dos persas lhe destinou para a eternidade.

Abdul ainda não teria 10 anos quando começou a ajudar Haji (o velho, em persa) que já tinha mais de 70 anos. Haji pescava todos os dias do nascer ao por do sol os pequenos peixes gariz por entre os mangues da floresta do mar de Hara, o mar dos manguezais, na ilha de Qeshm. Era o seu lago de águas calmas e segredos conhecidos. Ao velho começava a faltar força para lançar a rede e arrastar o barco. O menino ouvia e fazia o que o velho dizia. Às vezes pedia ao primo para o ajudar. O pai e o tio de Abdul eram amigos do velho, tinham um caravancerai de família na ilha, e mandavam os filhos levar-lhe comida e trazer o peixe.


Fotos pesquisadas por Abdul Amini na internet.


O velho morava só, numa palafita de estacas de madeira erguidas na lama do mangue junto à margem do lago. Em cima montara uma tenda de duas águas, com redes de pesca entrelaçadas em lama fazendo uma tela para a chuva não entrar. E que no verão, quando fazia muito calor, regava com água do lago para refrescar.


Já vivia ali há metade da vida. Mudou-se da aldeia depois que a mulher morreu, porque queria viver só com ela no pensamento. Amavam-se com paixão. Mas não deu tempo a terem filhos. Abdul foi o neto que Deus lhe trouxe para o acompanhar no fim da vida. De resto, não tinha ninguém.


Para além da casa que lhe cobria o corpo tinha o barco com que pescava. Atracava-o na lama do mangue, ao lado de palafita. Era um “hoori”, uma canoa de 3 metros, que essa sim já a podia partilhar com Abdul quando começou a precisar de ajuda e o menino lhe apareceu. Os hooris são os barcos de pesca dos pequenos pescadores do lago. Cruzam-se pachorrentamente com os “lenj”, os barcos que já podem pescar peixes grandes quando saem para as águas abertas do golfo pérsico, comerciando alimentos com os árabes do outro lado do mar.



Um dia, há muitos anos, foi num lenj até Ormuz, a ilha encantada com o nome do deus antigo dos persas. Viu praias de areia vermelha, grutas brancas de sal e rios dourados por entre montanhas com todas as cores do arco iris, a descerem em falésias gigantes até ao mar. Espantou-se com a história estranha de uns homens chamados portugueses, vindos do outro lado do mundo em barcos cheios de velas, ainda maiores que os lenjs. Traziam e levavam mercadorias, que não eram só alimentos, sedas e joias que não serviam para nada. Morriam de doenças na viagem e matavam à chegada se alguém discutisse com eles o lugar onde queriam ficar. Para isso construíram um forte de pedra com canhões voltados para o mar. No meio, enterrada no chão, fizeram uma espécie de mesquita para rezar a um deus diferente, que os protegia a eles.


Nunca mais quis voltar ao mar. Percebeu que as ilhas encantadas despertam cobiças. Passou a olhar o lago como o seu mundo seguro. E quando a mulher morreu sentiu que mesmo para morrer o lago era o lugar melhor para estar próximo do paraíso.


Nasceu muçulmano como quase toda a gente na ilha de Qeshm. Quando era menino ia rezar com a mãe à mesquita da aldeia. E no dia em que a mulher morreu acreditou que Alá a quem sempre rezaram a receberia no céu. Por isso e para evitar a solidão nessa noite mesmo foi dormir para o barco. Adormeceu a olhar a lua em crescente fino brilhando recortada no azul. E sonhou que da lua a mulher lhe estendia a mão puxando-o para dormir com ela, suspensos sobre as águas no meio das estrelas.


Dessas noites de volúpia acordava revigorado. Barbeava com cuidado as duas faces da cara e deixava crescer o bigode e a barba no queixo. Tinha a pele escura dos seus ancestrais indianos, com grandes manchas brancas que o sol não queimava, num pacto divino meio sobrenatural aos olhos da aldeia. Passou a encantar-se também com os peixes, com quem falava quando puxava a rede e os via saltando a brilhar ao sol. Tirava-os com carinho da rede para não os magoar. E matava-os com um gesto leve dos dedos ossudos para não morrerem sufocados. Só ficava com os peixes necessários para o dia, os outros voltavam para a água. Os necessários eram os que trocava com os amigos da aldeia, como o pai e o tio de Abdul, que lhe traziam pão, tâmaras, arroz e legumes, numa dieta que lhe esculpia o corpo alto num junco esguio vestido de branco.


Um dia há quinze anos adormeceu na lua e não voltou. Abdul veio com o pai despedir-se. A casa erguida na palafita foi a torre do silêncio que Ahura-Mazda, ou Ormuz-Mazda, o velho deus dos persas lhe destinou para a eternidade. Para que o seu corpo não apodrecesse na terra e fosse levado pelos pássaros até ao céu. Vieram Zaratustra, e Sidarta, e Jesus, e Maomé recebê-lo. Porque para todos o pescador do lago de Hara era um homem bom. E Abdul, na terra, chorou pela primeira vez com saudades de ser menino.


Foto de Henrique Raizler.


Qeshm e Ormuz, outubro de 2023

Paulo de Lencastre

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2 Comments


Guest
May 20

Não desfazendo as outras, para mim é a melhor história!

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Guest
Jan 04

História de encantar...

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