São filhos do lugar, dos vendedores de tudo, de fruta, de comida, de malhas de lã do Tibete, de sedas, de estátuas de Buda e dos deuses da Índia. São filhos dos pobres e dos aleijados que ali pedem, das árvores que ali crescem, das almas que ali dormem.
Estamos em Dharamsala, sopé dos Himalaias. Mais no alto manchas de neve brilham ao sol. Subimos a pé a colina do mosteiro onde vive o Dalai Lama. Os peregrinos vão subindo. Hoje é dia de celebração. Muitos como nós vêm curiosos, tirando fotografias, é a primeira vez. Monges de cabelo rapado, vestidos de laranja e púrpura, confirmam-nos o caminho. Sobem serenos, giram as rodas de oração tibetanas com devoção. Meninos e macacos fazem das rodas brinquedo, dando ao ritual sagrado uma pueril animação. São filhos do lugar, dos vendedores de tudo, de fruta, de comida, de malhas de lã do Tibete, de sedas, de estátuas de Buda e dos deuses da Índia. São filhos dos pobres e dos aleijados que ali pedem, das árvores que ali crescem, das almas que ali dormem. Em certo momento, num lugar lindo da colina, um memorial de fotografias. São tibetanos que se imolaram no fogo pela causa da libertação da sua nação. Dharamsala é a capital do Tibete na diáspora, do sofrimento, da nostalgia, e da esperança.
Estamos na Índia. Vacas sagradas esventram com os focinhos sacos de lixo de plástico colorido, à procura de comida. São companheiras dos cachorros, numa ceia em que já não há carnívoros nem herbívoros, mas bichos civilizados participando da pocilga humana. Os macacos, mais primos dos homens, já levaram o melhor, quando existe. Comem como nós, com os mesmos dedos, com as mesmas mãos, bananas, bolachas e chocolates. Mais ágeis do que nós, saltam de uma árvore ou de um telhado para nos roubar a comida, o telefone ou a carteira. Com o que não comem, brincam aos humanos. E no final, numa gestão de paradoxo, deitam ao chão os destroços que vão ajudar um mendigo.
Uma jovem mulher vestida de vermelho vivo, sentada no chão com o filho ao colo, estende-nos a mão a pedir esmola. Os seus olhos, negros, profundos, fitam-nos com um sorriso. Dar-lhe dinheiro, naquele lugar sagrado, a caminho do céu, é ficar em harmonia. Ao lado, um filho seminu brinca com pedras e paus e malgas de plástico vazias de comida. E depois, naquele lar que é uma manta cor-de-rosa esfarrapada estendida no chão, há ainda um vulto de homem, o pai, estático, também sentado, o olhar perdido no espaço, num outro tempo. Procuro-lhe o olhar. Também está a sorrir. É cego.
Chegamos ao alto, entramos. São milhares de peregrinos. Canta-se, canta-se muito. Jovens monges e serviçais trazem arroz e lentilhas em grandes panelas de alumínio que refulgem ao sol. Distribuem pratos e pequenas cuias feitas de folhas secas entrelaçadas. Come-se com as mãos. Dão chá em copos de papel, lançam bolachas de marcas garridas em pacotes de celofane. Ninguém tem de correr atrás, há comida para todos.
O Dalai Lama sai do mosteiro apoiado em dois jovens monges. Tem 87 anos. Dirige-se ao templo. A música dos gongos e tambores tibetanos torna-se ensurdecedora. Percorre a distância em passo lento, cadenciado. E sorri, sorri muito. Acena com uma serenidade de paz. Olha para nós. Vemos Deus através dele.
Meu Deus, porque não há um paraíso na terra? Estamos tão longe, e ao mesmo tempo tão perto.
Dharamsala, março de 2023
Paulo de Lencastre
Nota: Em abril de 2023 Sua Santidade o 14º Dalai Lama foi confrontado pela imprensa ocidental com a filmagem de um gesto de ternura difícil de compreender. Na cerimónia mensal de receber os peregrinos, há um menino que, encantado pelo seu olhar, lhe pede para o abraçar. O Dalai Lama, enternecido, tem com ele um gesto máximo de ternura tibetana, oferecendo-lhe a sua língua. É a ritualização da prática dos pais e avós alimentarem os filhos e os netos mastigando-lhes a comida e passando-a boca a boca, com a língua em forma de concha. Quando já não há mais comida para dar dão a própria língua para os meninos chuparem, num beijo final de aquietação. Só mesmo um ocidental que tenha cruzado o seu olhar com a doçura do olhar do Dalai Lama aceita esta explicação com naturalidade. E pode transmitir ao seu mundo a vontade genuína de procurar o que de bom nos une e não o que de mau nos separa.
Fotografia do New York Daily News
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