Talvez daqui a 100 anos, quando já não crescerem mais ramos verdes nos meus braços na primavera, eu peça a quem cá more para serrar o meu tronco, fazer de mim aqui uma grande fogueira, e deixar que o vento leve algumas das minhas cinzas até ao Mar.
Nasci há quase 500 anos. Menino selvagem no meio dos campos, num prado imenso sem casas próximas. Tinha vários irmãos à volta, e bichos com quem brincávamos. Abanávamos ao vento os ninhos, os gatos vergavam-nos os ramos, os pardais faziam-nos cócegas com o bico para comer os vermes que nos bebiam a seiva. Nos campos os bois pastavam pachorrentos, numa serenidade universal, que eu pensava sem princípio nem fim.
Já tinha boa sombra quando vi nascer ao lado uma casa de lavradores. Vinham da montanha, atraídos pela planura fértil da terra, e pelo vento ameno do mar. Pensei que iam ser a minha família para sempre. Com mais gatos, e cães, e meninos à volta para brincar. Dei sombra aos pais pelo verão e castanhas pelo outono. E até já me sonhava um dia a arder na lareira grande que era o altar da casa… aquecendo os velhos com os versos lindos de um poeta que iria nascer a tempo do meu funeral.
“E eis no carro morto o castanheiro, enquanto
Melros assobiam nos trigais além…
Heras amortalham-no em seu verde manto…
Deu-lhe a terra o leite, deu-lhe a aurora o pranto…
Que feliz cadáver, que até cheira bem! …
Em casal de serras arde o castanheiro
Lâmpada de pobres a fazer serão;
De redor do grande, festival braseiro,
A velhinha, o velho, o lavrador trigueiro,
A mulher, os filhos, o bichano e o cão.”
(Guerra Junqueiro, Os Simples, 1892)
Só que a vida foi muito diferente. Ainda era jovem, não teria 100 anos, quando as terras dos lavradores da casa foram compradas por gente de fora. Eram ingleses, que compraram tudo em redor, a perder de vista. Muralharam a terra e fizeram uma quinta. Ao fundo construíram um grande portão de meia lua, e abriram uma avenida larga para os carros de cavalos passarem. Terminava ao pé de mim. Cortaram alguns dos meus irmãos à volta e deram-me honras de árvore anfitriã.
Passei a conviver com eles. E mesmo a ser confidente do dono da casa. Trazia uma cadeira e sentava-se ao meu lado a ver a nova casa crescer por cima da casa dos lavradores. Um palacete branco de dois pisos ia sufocando aos poucos a casa térrea de pedra fumada. Talvez por ele estar ao meu lado, poupou a chaminé da lareira, deixando respirar os fantasmas dos velhinhos com quem eu sonhava morrer. E que ainda hoje moram no rés do chão da casa, passeando em silêncio um lajedo gasto de pedra transformado na cozinha do palacete pelos novos senhores.
No final pôs na fachada um brasão de pedra com os símbolos da família – uma cruz deitada com uma rosa ao meio – e em cima uma estrela por ser general. A família chamava-se Neville e ele chamava-se William. Pediu para me chamar de Chestnut Tree e assim ensinar o meu nome aos filhos. Tinha uma mulher bonita chamada Mary, que era um nome fácil de ensinar aos criados portugueses, que a chamavam de Dona Maria. Os filhos eram pequenos, subiam nos meus ramos mais baixos, que nunca eram podados e me deram o porte largo que ainda hoje tenho. Rodeou-me com um banco de pedra para que os meninos se sentassem à volta, a olhar para a casa e a ouvirem as minhas histórias, criando raízes à família transplantada.
Atrás dos ingleses vieram criados que construíram casas mais simples de pedra à volta. Tornei-me o centro de um novo lugar… Juntei meninos descalços e calçados no mesmo baloiço. Casei amas brancas vindas de Londres com homens de pele queimada por gerações de cavadores e pescadores de Gaia. Aos poucos, sem me aperceber, passei a pensar como um nobre. A avaliar o poder de quem chegava e a decidir-lhe o destino. Um dia por exemplo chegou um general inglês chamado Wellington, rodeado de soldados, que se instalou na casa com o seu séquito. A dona da casa à época era uma mulher madura chamada Josefa, que fora menina nos meus braços e a primeira a casar com um português, vindo das montanhas do Douro. Dos seus sete filhos de sangue anglo-luso, quatro eram meninos homens de veias a latejar por combater pelo general contra o invasor francês chamado Napoleão. Esse eu nunca o vi. Mas passei a pedir a Deus que ele perdesse, e morresse, para que não nos matasse se chegasse vivo até aqui.
Hoje estou mais velho, não sei quanto tempo ainda vou durar. É fácil que dure mais 100 anos, é o que diz o médico de árvores que a nova menina da casa manda vir para me analisar. O meu tronco está esventrado pelo tempo, e até há uma coruja que vem todos os anos com o macho marido fazer o ninho e por os filhotes dentro da caverna. Sou uma mãe de bichos e um avô de homens. Os meus ramos são cascas secas onde ainda corre seiva que faz brotar novos ramalhetes verdes pela primavera. Que dão flor no verão e fruto no outono. Tenho filhos à volta bem mais novos que me asseguram a vida e a eternidade. É deles o pólen que fecunda as flores fêmeas dos meus ramos para ainda dar algumas castanhas para o Natal. São a memória ténue da minha infância, quando quase não havia batatas nem milhos, e a castanha farta, fruto e farinha, era o pão sagrado dos homens e dos bichos deste lugar.
Hoje sou o ser vivo mais velho que mora no Fojo. Sou o patriarca. É debaixo dos meus ramos que se rezam as missas dos que nascem, dos que se casam, e dos que morrem. As minhas raízes amortalham os corpos dos cachorros da família, que alimentam a terra donde nascem jarros brancos que me fazem companhia. E já alguns dos homens querem o mesmo destino para a suas cinzas, porque a torre jazigo dos mortos da casa está cheia, sem mais lugares, no cemitério de Santa Marinha. Talvez daqui a 100 anos, quando já não crescerem mais ramos verdes nos meus braços na primavera, eu peça a quem cá more para serrar o meu tronco, fazer de mim aqui uma grande fogueira, e deixar que o vento leve algumas das minhas cinzas até ao Mar.
Fotografia de 2014. O gato morreu entretanto e foi enterrado junto a um ramo de jarros brancos.
Paulo de Lencastre
Gaia, julho de 2024