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Paulo de Lencastre

O Avô Mateus

Updated: 6 days ago

A morte repentina de Mateus deixara tudo em suspenso. As vinhas precisavam de tratamentos, senão não haveria vindima em setembro. A casa precisava de limpeza e até de obras de conforto.

Mateus, com a filha Emília e o genro Paulo, na Lapa em Lisboa, entre 1955 e 1957


Dia 17 de fevereiro de 1962. Maria Emília chorava inconsolável. José Paulo procurava que a inesperada notícia telefónica dessa manhã de inverno fosse recebida pela mulher, grávida de dois meses, com alguma serenidade. O pai Mateus foi ontem dormir à Sanradela e hoje não acordou. Adormeceu em paz com 66 anos. Mas mesmo José Paulo não conseguia evitar os olhos rasos de água. Não haveria mais o próximo dia 24 de março na agenda, quando o sogro vinha a Lisboa reencontrar a família depois do Natal, para festejar o aniversário. Este ano, se tudo corresse bem, contavam já poder anunciar-lhe o novo neto.


Mateus Augusto, Sepúlveda pela mãe Francisca da Quinta de São Jorge em Favaios, e Sampaio pelo pai Raul do casal da Sanradela, foi sereno na morte como foi na vida. Da mãe herdara uma fidalguia importante, nomeadamente do seu trisavô, o General Manuel Jorge Sepúlveda, herói da resistência às invasões francesas em Portugal, e ao mesmo tempo fundador da cidade de Porto Alegre no Brasil. E também do seu tio bisavô, Bernardo Sepúlveda, aderente à causa de D. Pedro, e proclamador militar da vitória liberal no Porto em 1820. Do pai vinha-lhe uma tradição de valentia em África. O seu avô Mateus Sampaio, governador do parque da Gorongosa em Moçambique, dizia a um ladrão desprevenido que lhe apontava o revólver às portas da Sanradela: olha que se falhas o primeiro tiro, o segundo é meu.


Nesta genealogia de bravos, Mateus apenas não teve o mesmo lugar na história porque a revolução em que apostou, a Monarquia do Norte, foi derrotada. “Ai dos vencidos”. Nem mais tarde o Estado Novo reabilitou os jovens oficiais do exército que como Mateus viram as suas carreiras truncadas por decreto republicano. Ficou com um magro soldo de alferes na reserva que o acompanhou, e à sua viúva, para o resto da vida.


É assim que aos 23 anos Mateus recolhe a casa, São Jorge. Vai ajudar o pai na administração de um património significativo de terras de vinho e azeite. A sua irmã Luísa casa e morre no primeiro parto. A sua irmã Alda procura substituí-la como mãe e casa com o cunhado. É neste ambiente familiar algo fechado que um dia, numa visita que faz à família Saavedra em Provesende, Mateus encontra Olímpia, a mulher esfusiante com quem sonhou toda a noite e que pediu em casamento mal o decoro permitiu. 


Olímpia trouxe uma energia nova à vida de Mateus, e problemas de partilhas aos Sepúlveda de São Jorge. Reivindicou de imediato a Casa Nobre da quinta, embora em ruínas, para o marido. Conseguiu assim dar alguma dignidade ao terço com que Mateus ia ficar na partilha familiar com o cunhado Armando. Armando Santos Pereira, médico, com menos linhagem e, talvez por isso, com mais desejo de eternidade, transformara São Jorge numa coutada do seu nome, multiplicando iniciais SP por tudo o que eram armazéns, pipas e toneis. Olímpia Neville Saavedra, com a pujança das suas origens, dos seus bens e da sua energia, foi a tábua de salvação de Mateus, recuperando para São Jorge um cosmopolitismo familiar que estava em risco de se perder.


Só que Olímpia nunca foi dona de casa em São Jorge. Sentia-se enclausurada no meio das vinhas, das matas e dos montes. Das poucas vezes que Mateus a teve a seu lado na cama de dossel e no silêncio romântico de São Jorge, ela falava-lhe na Casa da Praça em Provesende, fachada voltada para a praça do pelourinho, e calçada imediata para casa dos primos do Santo, onde à tarde se lanchava chá com torradas e à noite se jogavam cartas depois do jantar.


Mateus, se queria Olímpia, tinha de partir para os seus mundos. Provesende ainda era o mais fácil, porque estava a uma hora de carro, descendo ao Pinhão, atravessando o rio, e subindo até ao ninho de águias por entre socalcos de vinho ou mortórios de azeite. O mais do tempo a família morava numa casa imponente na Rua de Costa Cabral no Porto, com águia de porcelana no telhado, chofer à porta e criadas de tiara na cabeça.


Com Olímpia teve três filhos: Maria Emília, a sua adorada Milú, que lhe prolongou a existência com três netos, a última razão que teve de viver; Raul Jorge, a sua maior tristeza, ao morrer-lhe nos braços com uma meningite aos 4 anos; e Manuel Jorge, que nasce logo a seguir, como um ressuscitado, em quem depositou todos os seus anseios de descendência varonil.


Olímpia também lhe trouxe mundo. No Porto, em Coimbra, em Lisboa, ia tendo casa montada em função das necessidades de estudo de Manuel Jorge, menino demasiado poeta para ser bom aluno e demasiado urbano para ser agricultor. Olímpia, sempre sedutora por onde quer que passasse, chegou a conseguir emprego para Mateus no Ministério da Guerra, aproveitando o olhar mais complacente do Estado Novo para o crime de ser monárquico em regime republicano. 


Mas o Terreiro do Paço não era definitivamente o mundo de Mateus. Mal pode deixou o emprego para voltar a São Jorge, onde as vinhas definhavam à falta de olhar de dono. Na cidade, os dois filhos que vingaram tinham amas de confiança e destino aprazado em colégios que Olímpia programava com precisão. Olímpia, a sua amada Olímpia, transformara-se numa gestora sagaz das finanças familiares, passando mais o seu tempo nos bancos gerindo compras e vendas de ações, do que em casa a cuidar da vida doméstica.


A sua paixão por Olímpia, que lhe preenchia a memória, foi-se reconvertendo num amor mais sereno e platónico. Em Alijó, Mateus encontrava os seus amigos no Café da Paz, à roda da tertúlia política dos homens bons da terra. Era um líder discreto e respeitado, e assim foi eleito Presidente da Câmara. Quando era preciso receber com mais requinte alguém de fora, falava à D. Jenny da Pousada do Barão de Forrester, e à sua jovem e coquete governanta Aurorinha, habituadas a convidados estrangeiros das casas de vinhos e a caçadores de classe alta que elegiam a pousada como sua sede social de fim de semana.  Descia à cidade de quando em vez, carregando no comboio o que de melhor São Jorge tinha. Trazia fumeiro de presunto, alheiras e salpicão. A rainha era a bola de carne, que a Maria caseira enchia com recheio de aves, e a Maria padeira revestia com a massa de trigo mais famosa de todo o Douro, o pão de Favaios. De moscatel levava alguns garrafões, consciente que o vinho fino de Provesende tinha fama mais nobre com a qual não podia competir.    

     

E assim se foram passando os anos. A filha casara com um genro aristocrata de costados durienses que, embora funcionário público em Lisboa, sentia como ele a necessidade de velar pelas terras herdadas. O seu maior deleite ao entrar na terceira idade era descer a Lisboa, beijar ternamente Olímpia na Praceta João do Rio, e ir jantar a casa da filha, primeiro na Lapa, depois em Campo de Ourique, rodeado pelos netos, que já iam em três. Paulo, o mais velho, a quem se habituara com Milú a chamar de Quintas, trotava a cavalo na sua coxa, imaginando-se em São Jorge a mostrar-lhe as vinhas. Nem ele nem Joana, a neta seguinte, o “torrão de açúcar” do cunhado Pepe, tinham sido seus afilhados. Fora primazia dada aos outros dois patriarcas da família, Dom José de Lencastre, o avô paterno, e Pepe, o irmão único de Olímpia. Ficara com a mais pequenina, Maria, o novo bebé da casa, que se aninhava ao seu colo num rolo de mimo. Ironia, puxava muito mais ao lado Lencastre. Nunca se doera com esta sequência, que na verdade era aparente porque a filha o amava com ternura total, bem oposta ao amor de admiração, mas rival, que sentia pela mãe. 


O seu cunhado Pepe, brigadeiro, médico militar, doutorado em Berlim, professor de medicina em Coimbra, pneumatologista de sucesso com nome na enciclopédia pela invenção de uma máquina de análises pulmonares, e mais tarde com consultório no Chiado e clientela de luxo lisboeta, um solteiro de ouro que despedaçava corações femininos… acabara de morrer com um cancro nos pulmões provocado pelo seu eterno charuto! Manuel Jorge, o seu único filho homem, viajara para o Chile para ser padre. A boa notícia era que afinal namorava com uma jornalista chilena. Certo, certo, para o futuro, só conseguia contar mesmo com o casulo estável da filha, do genro e dos netos. Já combinara com Olímpia, como Manuel Jorge herdara de Pepe os brasões Neville do Fojo e Saavedra da Praça, Maria Emília ficaria com o brasão Sepúlveda de São Jorge.  


Quando Maria Emília e José Paulo chegaram do Douro, do enterro do Avô Mateus, disseram aos meninos que iriam mudar para o Norte, para o Porto, porque São Jorge precisava de cuidado. A morte repentina de Mateus deixara tudo em suspenso. As vinhas precisavam de tratamentos, senão não haveria vindima em setembro. A casa precisava de limpeza e até de obras de conforto. Mateus vivia como um asceta, entre a cama conjugal já sem dossel de São Jorge e a cama de ferro de solteiro da Sanradela, onde morreu. Até o Pantufas, o seu cão salsicha, presente das senhoras alemãs da Quinta de La Rosa no Pinhão, não lhe deixava a campa, à espera da sucessão. 


A Sra. Maria, a caseira, conseguira nessa tarde trazer o Pantufas para casa. Era a única que agora tinha ascendente sobre ele. Adotara-o anos atrás, qual ama de leite, quando o Sr. Mateusinhos lho entregara nos braços. Imaginara que, embora bebé, já vinha com as necessidades legítimas da sua origem, pelo que comia coxa de frango cozida com arroz, e à noite bebia chá de tília com mel e bolacha Maria para lhe preparar os sonhos. 


A Sra. Maria era uma mulher rosada e rotunda. O marido, o Sr. Póvoas, dava metade dela na largura. Era elegante, de bigode revirado com cera e alourado pelo cigarro de mortalha que fumava até lhe queimar a boca. O relógio de bolso, um Roskopf em corrente de prata, fora-lhe oferecido pelo patrão. Mas estavam velhos. Mateus mantinha-os por compreensão humana, recorrendo cada vez mais a pessoal de fora que orientava diretamente. Maria Emília e José Paulo tinham agora de rever tudo. O Sr. Póvoas percebeu que era hora de partir. A maior dificuldade foi explicar à Sra. Maria que o Pantufas tinha de ficar em São Jorge, a casa da sua família. Pouco tempo depois também o Pantufas morreria, abocanhado na garganta pelo Rajá, um pachorrento gigante arraçado de perdigueiro trazido pelos novos caseiros. Rajá não suportou mais o ladrar arrogante do baixinho que, sem se enxergar no seu tamanho, também se esqueceu que São Jorge tinha mudado. 


Mateus, o querido Avô, dorme em paz, porque a vida em São Jorge continuou o seu destino. Sete meses depois nascia o seu quarto neto, rapaz, Nuno, que Maria Emília e José Paulo quiseram que fosse o herdeiro de São Jorge.


São Jorge passou a ser a casa de família, o destino de fim de semana, o lugar das férias de campo, em setembro, depois da praia. “O outono é mestre pintor” ensinava José Paulo aos filhos, olhando para as árvores e as vinhas. Íam para as vindimas. Plantou vinhas novas de moscatel. Os chuveiros de balde suspenso deram lugar a modernos chuveiros de telefone, que aconchegavam o corpo com o repuxo de água quente fumegante, agora canalizada. As cabeceiras esventradas das camas foram forradas de damasco novo, bem como os sofás. A Mãe Emília cobriu as mesas e as camas com lençóis comprados em Vigo e toalhas e colchas amarelas, a sua cor preferida. A cama de casal também ganhou um novo dossel, amarelo.


Gaia, março de 2020 (dia de aniversário do Avô Mateus) 

Paulo de Lencastre

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1 Comment


Guest
May 21

😍😍😍😍😍

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