Será uma espécie de fêmea híbrida, qua acumula formas de muitos tempos idos, adormecida, paralisada porque guarda sagradamente no seu imenso ventre todo o bem e o mal produzidos pela condição humana?
A velha mulher adormecida à porta do templo hindu está morta ou sonha? A mim trouxe-me logo à memória uma história que a minha professora de yoga viveu e me contou quando cheguei à Índia. Um dia viu uma mulher, que podia ser esta quando ainda era fértil, a dar à luz um filho num mesmo chão de lama. Sozinha, num derradeiro esforço, a mulher conseguiu arrancá-lo de si própria, cortou-lhe o cordão umbilical com os dentes e pô-lo a mamar. Um bebé macaco, atraído pelo cheiro do leite, aproximou-se para disputar o peito. Ela tirou o outro peito e pôs o bebé macaco a mamar também, ao lado do filho.
Zaki é uma mulher brasileira que há muitos anos vai beber à Índia a sabedoria védica ancestral que ensina na sua escola Pura Luz no Recife. Com a naturalidade de uma ocidental que se sente em casa na Índia, foi comprar um manto para proteger o bebé humano acabado de nascer. Quando o estendeu à mulher indiana, ela pôs um ar estranho, não ligou ao manto, e num gesto universal de fome disse-lhe que o que precisava era de comida.
Neste planeta, uma mente curiosa tem de ir à Índia. Não há país que nos aguce mais os sentidos e as emoções. As cores são demasiado fortes. Os cheiros são demasiado intensos. As buzinas atordoam-nos. Os sabores levam-nos às lágrimas. Na Índia os nossos sentidos agitam-se e o nosso cérebro convulsiona. A todo o momento somos confrontados com a extrema riqueza e a extrema miséria, o extremo belo e o extremo lixo, a melhor fragrância e a pior pestilência. Aqui, os julgamentos de valor são inevitáveis. Como é possível que cinco milénios de civilização avançada consigam viver, conviver, sem vontade vigorosa de mudança, rodeados de tanta miséria? De tanto lixo? De tanta desordem? Que vai um europeu, que em dois milénios de civilização conseguiu resolver estes problemas de bem-estar e equidade humana muito melhor que ninguém, fazer à Índia? Ou um seu descendente americano, que com apenas 1/2 milénio de jovem empreendedorismo mais selvagem, deslocou para o Novo Mundo a vanguarda do desenvolvimento científico e tecnológico, o que poderá ele aprender nesta terra tão degradada?
Há o ocidental justiceiro que vem à Índia, ou que até nem precisa de lá ir, e que só a condena, sem qualquer compreensão. Tem razão, porque quando olha para baixo, para o chão que pisa ou o que os outros lhe contam, só vê uma sopa imensa de lama, onde boiam corpos de bichos e de homens, misturados entre a vida, a morte e a podridão. Onde só mesmo não apodrecem os plásticos, sinal miserável da moderna civilização.
Há o ingénuo que vem à Índia, ou que até lhe basta a filosofia encantada do seu mestre que também nunca foi, e que só a glorifica, sem qualquer conhecimento. Tem razão, porque a Índia é a pátria do tantra, do yoga, da meditação, de saberes muito antigos de felicidade que o ocidente só agora está a descobrir. Só olha para cima, só vê uma constelação de deuses!
Uma mente curiosa não se fica pelo aparente, precisa de espreitar para lá das grades, de abrir as portas, de sair das zonas de conforto, de mergulhar no oculto. Uma mente curiosa não se alimenta de soluções, alimenta-se de problemas, e caminha, caminha. Descobre, problematiza e caminha. Não se alimenta de preconceitos, anda no meio deles, de olhos bem abertos, à procura de uma compreensão. É a procura que alimenta a mente curiosa, a procura de uma compreensão acrescida para iniciar uma nova etapa. A compreensão última não aspira a consegui-la, é o seu deus, talvez só a encontre quando a morte chegar, quando retornar em cinzas à mãe natureza.
A Índia, com a brutalidade dos seus contrastes, pode ser para o homem moderno a terra do caminho do meio, da procura das essências, da fome essencial que mata e cria. Da essência? Da gota vital que tudo alimenta? Será uma espécie de fêmea híbrida, qua acumula formas de muitos tempos idos, adormecida, paralisada porque guarda sagradamente no seu imenso ventre todo o bem e o mal produzidos pela condição humana?
Uma mente curiosa está sempre a aprender na Índia!
Nota: título e texto inspirados em conversa com o meu professor de yoga Aurélio Cardoso sobre a “mente curiosa” e o “caminho do meio”.
Nova Deli, março de 2020
Paulo de Lencastre
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