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Nuno de Lencastre

Fado Clandestino

Updated: Nov 25

De algum encontro resultou uma amizade improvável, que Eva alimentou com telefonemas e cartas, e que Amália aceitou com carinho porque a vida sombria de Eva teria sido o seu mais provável destino. 

Há cem anos nascia Amália, a rainha do Fado. Toda a gente sabe o seu nome – Amália Rodrigues, ou simplesmente Amália como o mundo a conhecia.


Estou a escrever estas linhas porque li hoje um artigo na revista do Expresso – o semanário que informa Portugal ao fim de semana – dedicado à Amália. A propósito do centenário, consagra-lhe a capa e uma extensa história. Não conta nenhum dos êxitos que a artista teve pelos palcos do mundo fora, mas um seu comovedor caso de amor. Nunca os amantes o assumiram, devido à grande diferença de classe entre Amália e o seu apaixonado da alta sociedade de Lisboa.

     

Não pude deixar de relacionar este caso com um outro, da família – o do Tio Jorge com a D. Eva. O Tio Jorge também viveu assim. Estava na cultura da época o acontecer destes romances. Os “enfants-terribles” tinham um vertiginoso fascínio pelo mistério que envolvia o mundo do fado de então.


Com o fado, “a Lisboa modesta, popular e operária conhecia a Lisboa rica, elegante e ‘blasée’. Era um choque de famílias, de estratos sociais e de mentalidades que iria pôr à prova um grande amor…”.


Estes dois casos, que parecem distantes, unidos só pelo fado, por incrível que pareça, na realidade tocaram-se. Amália e Eva conheciam-se. Pelos anos 50 da noite de Lisboa, Amália era uma diva do fado, Eva uma jovem aprendiza. De algum encontro resultou uma amizade improvável, que Eva alimentou com telefonemas e cartas, e que Amália aceitou com carinho porque a vida sombria de Eva teria sido o seu mais provável destino. 


Eu já ouvira muitas vezes a D. Eva falar da Amália, como se se conhecessem bem. Mas, como tinha fama de ser mulher inventiva, ninguém acreditava no que contava sobre as suas intimidades. Muito menos esta com a grande fadista. Mas a verdade é que, num dia qualquer, me vejo a caminho da estação de Campanhã, com o Tio Jorge, para ir buscar Amália.


Por essa altura, no princípio dos anos 80, o Tio Jorge cinquentão morava no Porto. Trouxera a D. Eva da morada clandestina que tinha em Gaia, para lhe dar a segurança de um apartamento comprado de novo, na urbanização da Raione, um empreendimento do Banco Borges & Irmão que dava facilidades de aquisição aos seus funcionários. Era para os lados do hospital psiquiátrico do Conde Ferreira, na cidade oriental. Apesar de já ser no Porto, ainda ficava bem longe da nossa Boavista, que era o ecossistema social do Tio Jorge.    


O comboio chegou. Carreguei-lhe a mala. As memórias já não são muito nítidas. Estou a ver-me de pé, num fim de tarde ao pôr do sol, encostado à lareira da sala, emoldurada por uma pintura do rei D. José. O quadro resultou da troca de uma pistola muito antiga da casa de São Jorge, de madeira e ferro com decoração dourada, cedida pelo Tio Jorge ao conhecido homem dos vinhos e colecionador de armas Ralph Niepoort, que a conseguiu em troca do quadro.


Nos sofás, em frente à lareira, a grande Amália, a D. Eva e o Tio Jorge compunham o meu cenário. Bebia-se o nosso moscatel de São Jorge. Seguiu-se o jantar, também ele em casa do Tio Jorge, e Amália ficou lá instalada. Era simples e afável apesar da sua enorme celebridade. Nessa altura, com o Salazar e o Eusébio, eram as três figuras portuguesas mais marcantes do século XX. Daí eu estar fascinado por ter um encontro tão privado com a Diva.


Amália perguntou-me despreocupada o que eu fazia. Nessa altura eu vivia de forma intensa e algo solitária o meu encanto pelo toureio. Tinha feito 18 anos. Contei-lhe que andava numa escola de toureiros na Chamusca, de um amigo do meu pai, um grande cavaleiro da mesma geração que ela. Era um aristocrata da lezíria, criador de touros de lide, que admirava acima de tudo a pureza do gesto do homem mais que o privilégio da casta. Por isso ensinava aos meninos sem posses a serem toureiros a pé. Empregava-os na fábrica de tomate, com horários compatíveis para dançarem ao cair da tarde de capa e muleta encantando as bezerras da herdade. E, quando os sentia seguros, depois de várias “tentas” em privado, abria a praça da Chamusca com os nomes dos pupilos no cartel. Tinha sido o meu momento de glória…        


Leu-me nos olhos a paixão. No dia seguinte fui com o Tio Jorge levá-la a Campanhã. Ao entrar para o comboio, no seu beijo de despedida, olhou-me maternal, com carinho, e disse-me sussurrando – Que tenhas muita sorte! Alguém me tinha tratado como um “torero”.


Fotografia pesquisada na internet. Foi esta mais ou menos a Amália que eu conheci.

                                                                                  

Afinal, a ligação da Amália com a D. Eva existia mesmo. E eu, que nunca a tinha acreditado!


Porto, junho de 2020

Nuno de Lencastre


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