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Paulo de Lencastre

Contrastes do Canadá: Um Passeio de English Bay a Chinatown

Updated: Jun 22

No cruzamento seguinte, centenas de corpos dobrados como este deambulam pela rua. Alguns estão caídos. Outros, milhares, mais jovens, ainda eretos, cambaleiam, olhares vazios, como cegos ou sonâmbulos.

Beach Avenue ao longo da English Bay, Vancouver.


Vancouver é uma cidade linda. Estou a mostrá-la à minha filha Teresa, que chegou ontem à noite, dois dias depois de mim. Ficamos num pequeno hotel, sem estrelas, junto à English Bay Beach, e à entrada do Stanley Park. Hoje, domingo de manhã, mostro-lhe os diferentes horizontes da baía, recortando a cidade com espelhos de água, morros altos ao fundo, neve nos picos, um Rio de Janeiro em terra fria.


Estamos há mais de duas semanas no Canadá. Fizemos base em Toronto, a cidade rival da costa leste onde a Teresa, jornalista, está a trabalhar. Nunca tínhamos visto um país como este. Tudo organizado. Mas organizado não só para os que estão, também para os que chegam. “Se queres ser rico não venhas para o Canadá, vai para os Estados Unidos”. “Mas se queres continuar a ser pobre não tens melhor lugar para ficar e morrer”. Isto me dizia um velho professor de finanças chileno, aposentado da grande Universidade da Califórnia Los Angeles (UCLA), a justificar porque escolheu a discreta Universidade Simon Fraser de Vancouver para viver o resto dos seus dias académicos. Pela primeira vez estamos num país onde todos os estrangeiros estão em casa. Ser canadiano é vir de qualquer parte do mundo, nós, os nossos pais, os nossos avós, para uma terra imensa que nos acolhe e nos inclui. Vimos em Toronto um galo gigante de Barcelos, mais azul que o clássico, com crista e cauda às riscas vermelhas e amarelas, numa pracinha de Little Portugal. “Somos os guardiões do galo”. São três velhos açorianos que jogam cartas ao crepúsculo. Só não estamos mesmo em Portugal porque hoje já não se sabe onde termina Little Portugal e começa Little Italy, Little India, Koreantown ou Chinatown, tal a profusão de pizzas, sushis, tandooris, patos lacados e sopas coreanas que nos rodeiam na rua.   

   

Tudo é protegido. Os indígenas humanos. Os indígenas coiotes vindos da mata do vizinho Stanley Park, que se passeiam na praia como cães vadios, e a quem não podemos dar comida para não os tornar domésticos e dependentes. Porque tudo é livre e é ajudado a ser livre. Fumar marijuana de qualidade. Ser gay sem qualquer constrangimento. Este Canadá é o exemplo perfeito do paraíso ocidental civilizado, do Novo Mundo, dizia eu à minha filha Teresa, enquanto, curiosos, íamos seguindo no mapa da cidade o caminho para a Chinatown de Vancouver.             


A paisagem urbana tinha mudado um pouco. Deixamos para trás os arranha céus espelhados do centro moderno de Vancouver. Estamos na cidade mais antiga, Gastown, onde o vapor dos barcos que chegavam para o Gold Rush (1) se misturava com o fumo das casas e negócios dos que já tinham perdido o sonho, ou nunca ou tiveram, de enriquecer por milagre. Foi assim que nasceu Vancouver, no coração empreendedor do século 19.


Bairro de Gastown, a caminho de Chinatown em Vancouver. 


Cruzo-me com uma velhinha, curvada quase a noventa graus. Quando percebe que alguém a fotografa, desvia os olhos do chão e olha-me de soslaio, desconfiada. É uma cara enrugada de 50 anos num corpo vergado de 100. Estamos a atravessar uma fronteira. No cruzamento seguinte, centenas de corpos dobrados como este deambulam pela rua. Alguns estão caídos. Outros, milhares, mais jovens, ainda eretos, cambaleiam, olhares vazios, como cegos ou sonâmbulos.  


Parece o cenário de um filme. As lojas fechadas, entaipadas, foram substituídas por filas de tendas que lhes tapam o acesso ao longo dos passeios da rua. Tocas entulhadas de roupa e comida, das tendas saem homens e cães, numa mistura sem diferença definida entre machos e fêmeas, jovens e velhos. Numa das esquinas do cruzamento fica um sólido edifício de pedra, antigo e bem restaurado, espécie de edifício governamental protetor desta nação de miseráveis. Sentado nas escadas um vulto de homem dobrado procura com a seringa uma veia da perna carcomida de feridas. Um outro, em pé, mais robusto, ampara-o para não cair.


Subimos, o passo mais firme de quem sente que vai ao encontro de iguais. De facto, um jovem porteiro, de auscultadores ligados, abre-nos a porta profissionalmente. É o nosso único interlocutor possível. –É seguro passear por aqui? Não é muito. Não que “eles” sejam violentos, mas podem ser imprevisíveis. Cuidado com as fotografias. Podem entrar. É o “Community Centre” deste bairro, com biblioteca, refeitório, salas de eventos, tudo gratuito. Só que aqui tinha-se transformado no abrigo dos sem abrigo, desde que estes quarteirões de Vancouver se tornaram nos últimos anos, especialmente com a pandemia do coronavírus, na capital canadiana dos toxicodependentes pobres. O passa palavra correu por todo o norte frio da América. Vancouver tem um clima mais ameno, raramente neva, só chove, e para a chuva há sempre um plástico para nos cobrir.


No centro o pessoal de serviço tem instruções para os acolher. Recebem com complacência esta nova horda de utentes, que ali se acolhem da fome, do frio e do cansaço, adormecidos nas mesas com as malgas de sopa ainda a meio. Outros, menos em paz, dedilham frenéticos os telemóveis. Um ou outro, talvez os antigos utentes do bairro, leem o jornal. Parecem velhos xamãs esquecidos, perdidos no meio de uma tribo de dementes.     

     

Tiramos fotos discretamente e saímos. Com mais cuidado. Mas ao mesmo tempo mais seguros porque já nos habituamos aos olhares. Deixamos de ser turistas, passamos a ser passeantes da cidade que não evitam esta rua. E no meio de lojas fechadas, onde as exceções são também miseráveis minimercados de prateleiras semivazias, entrevimos uma porta vitrine de uma galeria de quadros. Entramos como num oásis.   


Shannon mudou-se para Chinatown há pouco tempo. Era a possibilidade de abrir a sua galeria de arte com renda módica. E também sempre foi apaixonada pela Chinatown da sua Vancouver. A história da cidade adensa-se aqui. É a junção da Main Street dos primeiros colonos do gold rush com a chegada dos operários chineses que construíram o caminho de ferro unindo o Canadá de costa a costa. E que, concluída a gigantesca obra em Vancouver, ficaram sem trabalho e sem dinheiro para a volta à sua terra que lhes fora prometida. Criaram o seu bairro, as suas profissões, entreajudaram-se na recriação dos seus costumes em terra estranha. Primeiro discriminados e sem direito à cidadania, foram aos poucos integrados, e são hoje o mais evidente exemplo em Vancouver do espírito de inclusão canadiana. Só que agora têm ao lado os mais recentes chegados, que lhes desvalorizam o bairro e os obrigam a fechar as lojas. “Por favor, mude de hotel” constrangeu-me a minha amiga canadiana de Vancouver que vim visitar, quando lhe disse que tinha reservado quarto num hotel simples, mas bem localizado no centro, na Main Street. “Os hotéis da Main Street, agora nem para pets” confirma-nos um velho quase andrajoso que come ao nosso lado sopa vantan, numa padaria onde entramos mais à frente.


Shannon procura conviver com esta nova realidade. Eles não são perigosos, nem roubam. Têm o seu subsídio do governo. Recebem a sua droga medicalizada. Ela anda com um spray na carteira, quando vê na rua algum esvair-se, dispara o spray numa narina e ele ressuscita. Acredita que vai haver uma solução. Ninguém contava nem com o coronavírus nem com isto. A comunidade chinesa é forte e respeitada, tem representantes no poder da cidade e do estado. E até lá os seus quadros luminosos, com a renda baixa, permitem-lhe sobreviver e salvar vidas.


Galeria de arte em Chinatown: a pintora Shannon Pawliw e a minha filha jornalista Teresa de Lencastre.               


Vancouver, novembro de 2022

Paulo de Lencastre


(1) Nota do editor: gold rush ou a febre do ouro é uma descoberta de ouro que traz uma onda de mineiros imigrantes em busca de fortuna. As principais corridas ao ouro ocorreram no século XIX na Austrália, Nova Zelândia, Brasil, Chile, África do Sul, Estados Unidos e Canadá.


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2 Comments


Guest
Jan 21

A música a acompanhar o artigo está excelente 😊

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Guest
Jan 21

Relato impressionante, ao ler parece que estamos a visitar Vancouver e a ver essa triste realidade.

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