Venham deuses, profetas, juntem-se todos numa reencarnação urgente de eleitos para criar nesta pobre terra devastada um juízo universal.
Fotografias de Francisco Abreu Lima
O que faz o deus Aúra Mazda em frente à torre Eiffel na prateleira do escritório ínfimo de uma confeitaria da rua do Grande Bazar em Teerão?
Vínhamos de visitar o Museu Nacional do Irão. Há uns 5000 anos o urbanismo de Susa, a primeira capital do império persa, estava para o mundo da época como para nós está o urbanismo de Paris. Quando há 2500 anos Dário o Grande transferiu a capital para Persépolis, a sua Porta das Nações ficou tão grandiosa quanto o Arco do Triunfo de Napoleão. Com ele a Pérsia tornara-se o maior império que a história jamais vira. Nele corriam as águas do Tigre e do Eufrates, do Nilo, estendia-se do Ganges na Índia ao Danúbio na Europa. Aúra Mazda era o Deus único de todas as nações do império, trazido pela mão do seu profeta Zoroastro, que antes convertera Histapes, rei dos Medos. Qual Constantino de Roma mais tarde, há 1500 anos, com o cristianismo.
Estávamos cansados de percorrer a história. Saímos do museu à procura de um café. Fomos para o centro do centro de Teerão. A rua do Grande Bazar ao fim da manhã está cheia de gente na calçada e de carros na rua. Como um oásis vimos uma mesa livre à nossa frente e sentamo-nos. Veio uma jovem empregada que não sabia inglês, mas com um grande sorriso foi chamar o colega. Veio um jovem que num inglês muito bom nos perguntou o que queríamos…
Fiquei a curtir o lugar enquanto o Francisco foi fazer compras para o Bazar. Estávamos há quinze dias no Irão. Em Shiraz, Yazd, Isphaã, Kasham, Teerão, a convivência com este povo tão acolhedor deu-nos a sensação absoluta de estar em casa. Puxei do meu computador para trabalhar, mas não resisti a começar esta crónica. O nosso amigo empregado veio-me avisar, pedindo desculpa, que talvez não fosse muito seguro trabalhar com o computador cá fora na rua. Ia falar com o patrão. Lá dentro na loja só havia um banco duplo, mas estava ocupado por dois velhos clientes … e não dava para escrever porque não tinha mesa. E havia o escritório do patrão, porta aberta, que ele não se importava que eu usasse.
Instalei-me nesta intimidade. Espirrei para as mãos, a menina sorridente que não sabia falar inglês entrou no escritório de braço estendido com um guardanapo de papel. O menino que falava bem inglês perguntou-me se já tinha vindo antes ao Irão. Disse-lhe que sim, para visitar os curdos. Perguntou-me então qual era a minha religião. Preferi devolver com uma pergunta: e a sua? Respondeu-me que não tinha, que era meio curdo meio persa. E eu respondi-lhe que também não tinha ao certo. Ele riu-se e perguntou? Mas tem um deus? Temos os dois o mesmo!
O patrão era um persa de meia idade que tratava os jovens empregados com ar paternal. Quando saí do escritório pediu-me para dar uma gorjeta ao empregado que me atendera porque estava a trabalhar há pouco tempo. Fiz questão de escolher na carteira uma nota grande no meio das pequenas, 1 milhão de reais iranianos, 2 euros. Igual à conta que paguei ao patrão pelos nossos cafés, águas, e sumos coloridos de cenoura e romã, com que nos entretemos durante a manhã. E disse-lhe com cumplicidade que era professor de marketing e que avaliava o seu empregado com a nota máxima. O patrão então explicou melhor. A loja tinha aberto há 20 dias. Podíamos estar em Paris. Mostrou-me os croissants fresquinhos, franceses, simples ou com chocolate, a sair do forno. O empregado, na sua juventude voluntarista, completou o patrão e foi mostrar as caixas de bolos de presente que podia levar para Portugal. Para parar o consumo, eu disse que ia almoçar com o meu amigo e voltávamos para o café.
Fomos almoçar em frente ao Bazar. Restaurante popular, prato feito à porta envolto em celofane para atrair os clientes. Kebab, manjericão, tomate… e um monte redondo de arroz cor de açafrão transformado em cara sorridente desenhada com grãos de romã. 1 milhão de reais, dava para nós dois. Era como se, em Lisboa, tivéssemos saído de uma confeitaria fina no Rossio para ir almoçar a uma tasca na Betesga. Sem vinho, regado com cola para cumprir o islão. Veio da Pepsi, porque patrocinava o frigorífico e o casaco de farda branco debruado com o azul da marca, que o velho empregado usava sem consciência. Voltamos à nossa confeitaria para o café.
Durante estes dias aprendemos muitas coisas desta Pérsia complexa, paradoxal. Onde o poder e o povo não sintonizam. E Teerão é a expressão maior da síntese contraditória. O desleixado museu nacional guarda dentro de portas as pedras mais preciosas de Persépolis, e com elas a memória mais antiga do grande império. No sumptuoso palácio das últimas dinastias, Cajar e Pálavi, tronos majestáticos de mármore verde refletem em efémeras paredes de espelhos e cristais a precaridade dos seus xás. A embaixada dos EUA, saqueada em 1979 na revolução dos aiatolas, está transformada num símbolo de antiamericanismo primário. Em vez de preservar a história, o écran catódico da antiga sala de espera é palco para Fidel Castro discursar para uma galeria de heróis do novo regime, alinhados em retratos: Gandi e Mandela convivem numa história baralhada com Chavez, Che Guevara e Mao Tse Tung. O centro de arte moderna, quase ao lado da embaixada, mostra como os novos artistas da velha linhagem persa misturam com à vontade a geometria colorida de um tapete com o retrato de uma possível Marylin de Andy Warhol.
Fotografia 1: Propaganda oficial para uso do hijab.
Fotografia 2: Pintor no bazar de Kasham.
Só que Marylin, se fosse iraniana, devia usar o hijab para aceder ao paraíso. Em 2022 uma jovem mulher foi presa por não usar convenientemente o hijab, e acabou por morrer às mãos da polícia dos costumes. Era curda, o que talvez ajude a explicar brutalidade policial, habituada a implicar com esta nação sem pátria que vive partilhada entre o Irão, o Iraque, a Síria e a Turquia. Mas o martírio da jovem foi bandeira para as mulheres iranianas fazerem grandes manifestações de rua nas principais cidades do país. E para a polícia se sentir impotente a suster este empoderamento inesperado do povo. Hoje passou a ser frequente ver mulheres na rua deixarem o seu hijab cair displicente sobre os ombros. Os cabelos ao vento, a maquilhagem intensa, o hijab transformado em lenço de liberdade, os jeans e os sapatos de ténis da Levis ou da Nike, tornam as novas jovens iranianas iguais às estrangeiras que as visitam. Que também já não precisam de usar hijab! Cenário impensável antes das manifestações…
É comum ouvir que o Irão se está a transformar num país onde as regras dos líderes religiosos não são para cumprir. Sabiam que no documento de identidade de um iraniano está registada a sua religião? Se nasceu cristão pode ser cristão. Se nasceu judeu, pode ser judeu. Se nasceu zoroastra, pode ser zoroastra. E pode mudar, claro, se descobrir a religião verdadeira. Mas se nasceu muçulmano, não pode mudar na República Islâmica do Irão, ninguém pode renegar a verdade. É crime de morte, punível com degolação.
Quando os xás muçulmanos derrubaram os xás zoroastras, aproveitando o despotismo instalado e a progressiva utilização de mão de obra escrava, a liberdade e a igualdade da condição humana foram como sempre o argumento da revolução. Passado algum tempo houve um pequeno retoque: a liberdade tinha um custo, um imposto religioso, quem não fosse muçulmano tinha de pagar um tributo ao xá. Consta que foi assim, em liberdade, que a religião muçulmana se tornou dominante em todo o império.
Hoje nas ruas ouvimos muito mais vezes os iranianos dizerem mal dos aiatolas que os governam do que dos americanos que os sufocam com embargos económicos. O que nada tem a ver com a iconografia oficial do poder, destilando ódio contra os americanos, e os judeus seus representantes na geopolítica regional. Quem olhe o Irão pela propaganda pública vê um país bem religioso, venerador dos seus líderes omnipresentes – Khomeini o morto e Khamenei o vivo – diabolizadores do capitalismo ocidental. Talvez por isso, Khamenei tem um discurso notável em 2015, transcrito num placard da embaixada americana, dirigido aos jovens da Europa e da América do Norte. Pede-lhes para não seguirem sem crítica a propaganda faciosa contra o Irão dos seus líderes políticos. Que esquecem com cinismo as atrocidades cometidas pelo poder cristão – escravidão dos povos de cor, extermínio de não cristãos. E apontam o dedo a atos terroristas, segundo ele cometidos por mercenários contratados para denegrir a dimensão humana e ética do islão. “Olhem para o que eu digo, não olhem para o que eu faço”, hoje parece ser demasiado tarde para que os jovens iranianos acreditem que os seus velhos líderes falam a verdade e os representam bem no mundo.
Propaganda na antiga embaixada dos EUA, hoje museu, em Teerão.
Quanto tempo vai durar este paradoxo? Ninguém sabe. Curiosamente não se nota mesmo uma tendência dominante. Quando se pergunta quem são as vozes mais importantes da oposição, tanto nos falam do filho do último xá Pálavi (que vive exilado nos EUA desde a revolução de 1979) como de uma atriz famosa ou de um grande ex-jogador de futebol.
Há os pacifistas que acreditam que a revolução se faz por dentro com manifestações como a das mulheres em 2022 depois da morte da menina curda. Há os belicosos que acham que os americanos têm de vir por aí dentro tirar os aiatolas que cá puseram. E que lhes mentiram, a eles e aos comunistas da Rússia, e aos democratas da Europa, fazendo-os acreditar que, deposto o xá e a sua corrupção, haveria lugar para todos. Há os eruditos que acham que o problema é mesmo da religião, que a religião histórica da Pérsia vem de Zoroastro há 2500 anos, não de Maomé, que os árabes invadiram a Pérsia com a sua religião e a sua história, apagando nas escolas o orgulho nas dinastias antigas que fizeram a grandeza do império. Como se o Irão fosse uma nação libertada, das trevas do obscurantismo zoroastra, pelas dinastias muçulmanas, há 1200 anos.
Na confeitaria da rua só se pensa no dia a dia. Na simpatia total com quem se senta. Na preocupação absoluta de dizer aos turistas “Welcome to Iran” sempre que um olhar se cruza um pouco mais para provocar a conversa. “What is you country?” E se a resposta é Portugal, de imediato salta Cristiano Ronaldo. Que por acaso foi para a Arábia Saudita. Arrastando Benzema e Neymar, arrastando o mundo ocidental cristão para o médio oriente muçulmano. Com encontro marcado para a Copa do Mundo de Futebol de 2034, daqui a 10 anos.
Há 100 anos um nobre guerreiro árabe da família Saud recebeu dos ingleses – a potência protetora – um deserto para governar. Casou com as filhas dos nobres rivais para legitimar o seu poder na grande península. E implantou uma monarquia inspirada na lei do profeta Maomé que nasceu nessa terra e no deus Alá que o enviou. Alá ouviu-o e encharcou o deserto de petróleo. Hoje um jovem príncipe iluminado, neto desse rei, sem renegar Maomé, acabou com a guarda religiosa, decretou que as mulheres árabes já podem andar de cara descoberta, viajar sem os maridos e conduzir os seus carros. Que Riade vai ser a nova Dubai, com metro construído de uma só vez cobrindo toda a cidade. Com uma nova cidade inteligente avançando no deserto. Com o velho forte sombrio da família Saud a ondular na noite com luzes psicadélicas, ao som do corpo de Mariah Carey, respeitosamente colado a um vestido negro cintilante.
Há 100 anos um humilde bebé persa, órfão de pai e abandonado pela mãe, torna-se militar e sobe ao trono depondo um rei frágil, o último da dinastia Cajar. Apoiado pelos ingleses, assume-se como o libertador de um império invadido há mais de 1000 anos pelos árabes e pela sua religião. Foi à Turquia aprender com Ataturk, seu amigo, como fundar uma república laica num país islâmico. Mas não resistiu à tradição do império e foi coroado xá (rei dos reis). Batizou a nova dinastia de Pálavi (a língua persa antiga, origem ariana das línguas indo europeias) e mudou o nome do país para Irão (a terra berço dos arianos há 5000 anos). Mandou vir Schmitt, arqueólogo alemão naturalizado americano, para recuperar a grandeza original das ruínas de Persépolis, tornando-se com essa tarefa precursor da fotografia aérea. Foi à Índia buscar seguidores de Zoroastro para resgatar a memória religiosa do antigo império. E trazerem com eles uma pira do fogo eterno acendido pelo profeta em honra do seu deus Aúra Mazda. O filho de Pálavi também recebeu a bênção do petróleo. Neste caso envenenada, porque o seu ministro o quis nacionalizar e os ingleses e americanos seus aliados não gostaram. E apoiaram um líder religioso – Khomeini – que transformou o reino num estado islâmico. O atual líder religioso que, entretanto, lhe sucedeu – Khamenei – está velho, e diz-se que quem comanda de facto o país é o seu filho... Será que vai pensar como o seu vizinho saudita?
Há poucos meses, delegados dos dois líderes, da Arábia e do Irão, assinaram na China um discreto acordo de não agressão. A China precisava deste acordo para poder continuar a investir com alguma segurança na região. Seriam enviados de Maomé e de Zoroastro, convidados por uma reincarnação chinesa de Sidarta para estabelecer uma paz duradoura entre os vizinhos rivais do golfo pérsico/arábico?
Foto e notícia no El País, 6 de abril de 2023, ministros dos negócios estrangeiros do Irão e da Arábia Saudita, convidados pelo seu homólogo chinês, assinam em Pequim acordo de reabertura de embaixadas em Teerão e em Riade.
Outdoor de jardim em Teerão.
Mas hoje, aqui ao lado, na Palestina, deflagrou uma guerra sangrenta entre árabes e judeus. Milhares de humanos são mortos, feridos, estropiados, por decisão de meia dúzia de governantes, legais ou clandestinos. Os terroristas do Hamas mandam degolar crianças e estuprar mulheres por serem judias. Os ministros de Israel mandam bombardear cidades inteiras porque os terroristas se aninham no meio da população de inocentes. Os aiatolas do Irão apoiam os terroristas do Hamas por serem muçulmanos. E, com os restantes senhores do mundo, assistem impávidos às chacinas, enquanto vendem armas, trocam discursos, e cruzam julgamentos sobre quais das atrocidades são crimes e quais são legítimas.
Venham deuses, profetas, juntem-se todos numa reencarnação urgente de eleitos para criar nesta pobre terra devastada um juízo universal. Vem Aúra Mazda, o deus grande mais antigo da história dos homens, aterrar em simbólico voo de águia no alto da torre de ferro desta civilização moderna, para relembrar aos humanos de hoje o que é o bem e o que é o mal.
A confeitaria em Teerão é uma aproximação deste paraíso utópico na terra. Talvez por isso Aúra Mazda tenha decidido aterrar aqui, trazendo com ele a torre Eiffel, os croissants quentinhos de França, a mensagem que todos os Deuses únicos da história trouxeram aos homens através dos seus iluminados profetas – Paz – e que os homens têm tido tanta dificuldade em aprender.
Teerão, outubro de 2023
Paulo de Lencastre
Incrível reportagem!