Os escombros amontoam-se nas entradas, e vão crescendo com os lixos malcheirosos do dia a dia. E as crianças brincam, as mães vigiam, as avós dormitam, os homens jogam dominó ou cartas à luz da lua.
Escrevo estas linhas (1) no hall do Hotel Ambos Mundos, em Havana. Tencionava escrevê-las no café aqui ao lado, onde costumava vir o nosso Eça de Queirós quando era cônsul em Havana. Está fechado, abre não se sabe quando, e por isso o destino quer que eu escreva sobre Ernest Hemingway. Hemingway ficava hospedado neste hotel quando vinha a Cuba. O seu quarto, que acabo de visitar, mostra a presença de um homem grande, bem vestido, gravatas e sapatos de um bom gosto discreto.
Escreveu em Cuba um dos meus livros mais queridos desde a juventude, o Velho e o Mar. Vir aqui, quase vê-lo, é uma romagem às coisas essenciais da vida. Hemingway suicidou-se, soube agora que aos 62 anos, exatamente a minha idade atual. Consigo entender… a vida aos 62 pode estar completa. Eu sinto isso um pouco. Só que, ao contrário de Hemingway, talvez por falta da sua heroicidade, quero curtir com aconchego esta fase da vida que também pode ser muito boa.
Hoje é 10 de junho. Ontem, completamente por acaso, assisti a um concerto que me marcou. Passeava sem destino, ao crepúsculo, numa das grandes avenidas de Havana, quase deserta. Vejo um aglomerado de gente à entrada de um teatro, aproximo-me como mosca da luz… e descubro que no dia seguinte o programa é português, do também nosso Luís Represas. Quem o apresentou, um cubano, disse uma coisa muito interessante. Ao contrário do frequente em outras nações, o dia nacional de Portugal não comemora uma batalha, mas a morte mítica de um grande escritor, Camões.
Porque junto tudo isto? Antes de mais porque bebi um mojito que me solta a criatividade. Depois porque Havana me fez descobrir uma nova cumplicidade natural. Tenho vivido os últimos anos a louvar os méritos da lusofonia. Porquê…? Descobri-a tarde, depois de me ter europeizado de corpo e alma. Cheguei ao Brasil, terra da minha avó, com 35 anos. Fabriquei razões para voltar sempre, todos os anos, metade do ano, metade da vida. Criei a obsessão de conhecer bem Angola e Moçambique, Cabo Verde e Guiné… não quero morrer sem ir a São Tomé e a Timor. Obsessão de comparar, de ver diferenças na proximidade, de viver proximidades na diferença.
Em Havana, sem contar, vivi enormes proximidades. Percebi bem com o Luís Represas como se pode misturar português e espanhol numa perfeita harmonia, ele que se diz cubano como eu me digo brasileiro. Senti como no Brasil a mesma mistura descontraída de branco e de negro, sem fronteira precisa e sem discriminação. Ao que percebi foi um dos triunfos de La Revolución!!! Mas que só é possível se a mistura existir de facto, nos corpos e nas vidas. A mesma doçura, a mesma alegria dos trópicos lusos, a mesma desordem, o mesmo viver intenso, dia a dia.
Aqui em Cuba o dia de amanhã de um cubano, no momento, não tem mesmo luz. Sem querer ideologizar, ouvi várias vezes que uma luz se acendeu com a visita de Obama em 2016 e se apagou com a eleição de Trump. É impressionante como as lojas têm as prateleiras vazias e em certos momentos se fazem filas enormes de pessoas para receber um caixote com a cesta básica do mês. Arroz, feijão, 2 pedaços de frango, peixe só para quem tem colesterol ou sida… pensos higiénicos só para as mulheres até aos 55 anos.
Salvo exceções, como o Capitólio ou o Gran Teatro, a noite nas ruas de Havana é tenebrosa. Com a iluminação pública fundida, sombras de pessoas movem-se em dédalos de prédios centenários em ruínas. Lá dentro tremulam lâmpadas baratas, improvisadas em novelos de fios. Alumiam paredes e tetos, muitas vezes com vestígios de ricos estuques e pinturas coloridas, a esboroarem-se. Os escombros amontoam-se nas entradas, e vão crescendo com os lixos malcheirosos do dia a dia. E as crianças brincam, as mães vigiam, as avós dormitam, os homens jogam dominó ou cartas à luz da lua. Táxi? Que procuras? Una chica? – Na sombra um triciclo de estofos vermelhos, uma menina sorrindo, ou apenas um gato adormecido lembrando que já são horas de dormir.
Ao segundo dia, depois de nos habituarmos a que as sombras são benignas, passear à noite em Havana é mágico. Já fechou tudo, mas não apetece parar. Há sempre vida na sombra, os bares, os barbeiros, os incipientes comércios familiares, deixam-se ficar de porta entreaberta numa mistura de loja e de casa donde sai sempre uma saudação curiosa ao viandante. “Where are you from?” – De Portugal, amiga!
Passeio-me há uma semana pelas ruas de Havana e não senti nunca o menor sinal de perigo. A polícia – “revolucionária” no seu crachá de identidade – cumprimenta-nos com simpatia. São homens e mulheres iguais aos outros, apenas bem fardados, discretamente armados, que nos fazem sentir seguros, desejados, bem acolhidos. Percebi que em Cuba a polícia é respeitada e os turistas são um tesouro.
Como turista, nunca me senti tão bem como em Cuba! Por falar português? Deve ajudar! “O Brasil canta e dança quase como nós…”. Angola foi nação irmã na Revolução. Portugal tem o Cristiano Ronaldo. Vou ver o que diz o nosso Eça. Mas Hemingway é americano, de outro mundo, e também se encantou com esta terra.
Havana, junho de 2018
Paulo de Lencastre
(1) … dedicadas à minha filha Teresa, jornalista, que me desafiou a ir a Cuba, e que não pode embarcar no Recife para Havana por lhe faltar o boletim de vacinas exigido em Cuba para quem viesse do Brasil. Por isso viajei sozinho, a pensar nela ☹.
Lindo! Uma viagem autêntica.