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Paulo de Lencastre

A Última Geração

Updated: Jul 15

Iria nascer um ano depois, a nona filha de uma mãe a duvidar do futuro, a ter de ensinar na escola, em inglês e hindi, que o português e a religião cristã afinal já não eram a única forma certa de falar com Deus.

Silvana chegara demasiado apressada na sua scooter para perder tempo com protocolos. Olhou para a mulher à sua frente. Tinha-lhe sido recomendada pela cônsul de Portugal em Goa para a acompanhar em Damão. A mulher era mais velha do que ela, talvez dez anos. Pela roupa parecia uma daquelas senhoras da alta sociedade de Portugal que de vez em quando lhe aterravam em Damão para uma visita. Tinha de se despachar, à tarde tinha ainda de ir reservar a sala para a festa do 10 de junho que a cônsul lhe pedira (1).


– A senhora o que quer ver? Chama-se Fátima, vou mostrar-lhe a igreja do convento de Nossa Senhora de Fátima. E também a escola do convento, onde a minha mãe dava aulas, e onde eu estudei…


Tinham marcado encontro na Catedral ao meio dia. Calor sufocante. Horário de ricos, de ar condicionado, pouco habituados a andar a pé na rua. Devia ter sido mais cedo. Silvana deu com Fátima a volta a pé à pequena cidade muralhada que ainda hoje é o coração de Damão. Andava com se estivesse em casa, uma espécie de governanta respeitável daquelas muralhas. Entrava pelas casas dentro, dos moradores, dos funcionários, dos governantes. Nascera ali, morara ali, estudara ali, trabalhara ali, reformara-se ali. Só quando deixou de trabalhar há um ano teve de entregar a casa ao estado e mudar-se para fora de portas. Fora funcionária pública, no edifício que ficava mesmo ao lado do convento. 


Pelo caminho viram o farol dos portugueses, pintado de brinquedo pelos indianos, em contraste com o maior, mais moderno e mais cinzento que lhe puseram ao lado. Ao fundo a praia. Havia naquela visita uma ingenuidade sincrética, em 50 metros mudava-se a leitura da história. Um monumento português de pedra mais velha lembra os mortos de 1954 defendendo a terra portuguesa. Uns passos adiante um monumento em hindi e em inglês glorifica os mortos da libertação em 1961.


Silvana fazia parte do cenário. Fátima estudava-a com interesse. Tinha aquela altivez descontraída de quem não tem complexos de condição. Falava com ela de igual para igual, mesmo tendo consciência do abismo de vida que as separava.


Descendente de brâmanes descidos da Cachemira para Goa, Fátima tinha na sua memória ancestral o hábito de mandar e ser servida. A conversão cristã das famílias hindus quando os portugueses chegaram não alterou os privilégios de casta. Os portugueses distinguiam tão bem as castas quanto os indianos. E ofereciam a cada família convertida um nome e uma função adequados à posição que tinham na sociedade. Um aristocrata português via com bom grado ceder o seu nome de família a um brâmane convertido. Um sudra ascenderia a plebeu português, com o nome e apelido que o patrão lhe desse, significando tão só que se libertava do carma eterno de ser intocável.


Foi assim que a família de Fátima viveu durante os 450 anos de domínio português em Goa. O seu poder económico floresceu ainda mais, integrado agora num espaço de comércio e funções alargado a Ocidente. Tinham minas de ferro, imensas terras agrícolas e importantes cargos públicos. O seu pai era um alto funcionário em Moçambique, a sua mãe foi parlamentar por Goa em Lisboa. Na casa da família materna, onde nasceu – um solar de arquitetura indo-portuguesa do século XVI tornada opulenta ao longo dos séculos seguintes – tinha uma constelação de famílias dedicadas às necessidades da sua corte, da cozinha às crianças, do alfaiate ao ourives.




Agosto de 1947. A Inglaterra dá a independência à Índia britânica, separando hindus e muçulmanos entre a União Indiana e o Domínio do Paquistão. Portugal demora a fazer o mesmo. Luta contra os ventos da história, talvez perdendo a oportunidade de criar um pequeno estado cristão independente na Índia portuguesa. Em vez disso compra uma guerra, primeiro surda e diplomática, depois explícita e armada, quando a Índia anexa em 1954 os territórios portugueses de Dadrá e Nagar Haveli. 


Dezembro de 1961. Quarenta mil soldados da União Indiana invadem Goa em dois dias. Dois mil soldados portugueses rendem-se, apesar de Salazar em Lisboa lhes ter dado instruções para se defenderam até à morte.


Fátima ia fazer dez anos. Nascera em Goa, mas abrira os olhos em Moçambique por causa do emprego do pai. Agora vão para Portugal, integrando a comunidade dos goeses na diáspora, protegidos pelo estado português como símbolos de uma soberania perdida de facto, mas reivindicada pela lei e pela fé. Dançou de sari em Paris ao som de canções de Goa em nome de Portugal. Só à sua terra natal estava proibida de regressar pelo estado indiano. São indianos refugiados em Portugal, são portugueses inimigos na Índia. 


– Silvana, que idade tem? Ainda não tinha nascido em 1961, quando Goa, Damão e Diu passam a ser terra indiana. Iria nascer um ano depois, a nona filha de uma mãe a duvidar do futuro, a ter de ensinar na escola, em inglês e hindi, que o português e a religião cristã afinal já não eram a única forma certa de falar com Deus. O marido, funcionário público, passou a ter de olhar o inimigo como o seu novo patrão.


Abril de 1974. Revolução em Portugal. Portugal reconhece a soberania da União Indiana nos seus territórios ocupados. Fátima vai para o Brasil como muitos portugueses associados ao Estado Novo colonial, mal-amados dos novos revolucionários. Quando Portugal acalma, regressa a Lisboa, casa com um português, tem um casal de filhos, separa-se cedo, e vive uma vida profissional de sucesso gerindo as marcas de luxo de uma gigante multinacional de perfumes. E voltou há dez anos, jovem sexagenária reformada, para viver finalmente a sua Índia, Goa. A mãe viúva e a irmã solteira precisavam de ajuda para manter a casa de família, que estava a arruinar-se. O filho veio com ela, atraído por uma inesperada energia genética que o arrancou a Lisboa para se entranhar nas raízes goesas dos avós. 


Silvana não tem filhos. Ficou viúva ao fim de um ano de casamento e nunca mais quis casar. Também nunca quis ter a nacionalidade e o passaporte de portuguesa. Perdia a nacionalidade indiana, que por lei um indiano não pode ter dupla nacionalidade. E, afinal, quando quis ir a Portugal, na única vez que foi, há vinte anos, pediu um visto sem problemas. Na verdade, ela é damanense, Damão é a única identidade nacional que sente e traz nas veias. E é dentro daquelas muralhas que se sente em casa.  


Faltava mostrar a igreja de Nossa Senhora do Rosário, ao lado a Câmara Municipal. A “Sala das Sessões” estava em obras. Numa parede Durga, a deusa mãe. Na outra Nossa Senhora da Purificação. E no “Gabinete do Presidente” o jovem secretário do governador, de turbante sique e postura impecável, recebeu-a para dar as boas vindas aos visitantes. Tiraram uma fotografia oficial. Silvana aproveitou para lhe explicar como seriam as festas do 10 de junho que estava a organizar para o consulado, e que desta vez seriam em Damão.  


–  Não está com fome? A esta hora já é tarde. Temos um biryani lá fora, ao lado das muralhas. Fátima encostou-se atrás na scooter de Silvana. As duas mulheres coladas pelo corpo passavam uma energia comum que unia os opostos. Fátima sentia-se aconchegada por esta irmã de condição cristã. Eram irmãs em Cristo em terra de hindus.



Pelo caminho passaram pela casa do irmão mais velho de Silvana. Queria apresentá-lo a Fátima porque também tinha casa em Goa. Fora funcionário do consulado, por isso era o único da família que teve de ter passaporte e nacionalidade portuguesa. Fátima viu nele uma deferência e um respeito de quem em Goa sabe da sua linhagem. Eram da mesma idade. Sabiam bem porque Goa olhava Damão com a sobranceria da capital, e Damão olhava Goa com a desconfiança de quem acha que só recebe as migalhas do poder. Em Damão não havia famílias ricas e poderosas como a dela. Parentes pobres do poder português, até se sentem melhor agora na dependência do governo central de Deli, juntos com Diu, Dadrá e Nagar Haveli. Goa, convertida em estado autónomo, é demasiado rica e distante para se ocupar deles (2).


Voltaram à scooter para chegar ao biryani. Damão fora das muralhas já é muito mais Índia na confusão. Pararam em frente à mais humilde das tendas de comida de rua. Ao lado era a casa da madrinha de Silvana. Os vizinhos à volta eram amigos irmãos de infância. Entrou por outra casa dentro, da filha de um polícia que ficou solteira. Agora estava sozinha, a irmã e o cunhado morreram, a sobrinha neta vivia em Londres. 


Fátima quis pagar o biryani. Silvana aceitou serena como um gesto natural. 100 rupias (1 euro). Onde o iriam comer? … Silvana não era mulher de fazer cerimónias. Levou Fátima para a sua casa nova. Um apartamento simples fora de portas, já urbanismo pós-colonial massificado para acolher a imensa população indiana que veio para Damão. Ofereceu-lhe o vinho que tinha, australiano, trouxe os pratos, e comeram o biryani.


Fátima olhou para o filho, seguira atrás, na mota de outro irmão de Silvana. Se Silvana fosse de Goa desafiava-a para ir trabalhar para a casa da família, transformada em guest house de luxo. Seria o par ideal para o seu mordomo, filho e neto e bisneto a perder de vista dos alfaiates da casa. Em jovem libertou-se do destino e fez vida no Dubai num hotel de cinco estrelas. Regressou reformado, e assumiu com naturalidade a farda branca dos mordomos, a contar aos hóspedes a saga de cinco séculos da família dos patrões. Era goês, “sossegado” (3), faltava-lhe a agilidade desta mulher.


Silvana era a imagem melhor da comunidade cristã de Damão. Gente humilde, nada ligados a Portugal enquanto nação, mas muito coesos na sua fé e na identidade dos seus costumes. Levou-a à missa de Nossa Senhora dos Remédios ao fim da tarde. Depois rezou o terço. Tudo em português claro, era para eles a língua litúrgica. Até o padre, que veio de fora, já sabia ler em português, e só desviava para o inglês quando de improviso saía dos textos sagrados. Os cristãos de Damão encontram-se todos os dias ao fim da tarde nesta missa, seguida de terço cá fora, com a fogueira a arder.  


Fátima sentiu orgulho em pertencer a esta egrégora. Lá longe, da sua Lisboa da linha de Cascais, sentia que eram daqui as suas verdadeiras raízes. Goa claro. Mas também Damão. E até a longínqua ilha de Diu. Quando se anda por fora, mais longe, sentimos proximidades que não existem quando só vivemos dentro de portas.  Desde há dez anos que apostara em deixar a frivolidade lisboeta para regar as suas raízes. Felizmente o filho viera com ela. Agora até namora uma goesa fadista que canta nos serões da casa quando há eventos ou muitos hóspedes.


Silvana, como sempre, vive o dia a dia. Dedica-se à família, aos irmãos, à tradição cristã na igreja de Nossa Senhora dos Remédios. Os sobrinhos, como muitos dos filhos jovens de Damão, foram para Londres, estudar e trabalhar. Para a cônsul ela é a líder da comunidade de Damão, que conhece como as suas mãos, quando anda na scooter. 


Depois do biryani, e da missa, quando Fátima não resistiu e a desafiou para ir trabalhar para a casa dela em Goa, Silvana nem pestanejou. Sentiu dentro de si como estava entranhada naquela terra. Não conseguia sair da sua Damão natal. 


– Senhora, desculpe, não posso ir.


Goa e Damão continuaram a seguir separadas o seu destino.


Damão, maio de 2024

Paulo de Lencastre


Nota do autor:

Silvana e Fátima são personagens reais de uma história inventada. Provavelmente nem se conhecem, nem se encontraram. São atrizes de um guião imaginário neste Portugal distante que agora descobri na Índia.


Notas do editor:

(1) 10 de junho é o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades, que as comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo celebram com o apoio oficial do estado português.

(2) Goa, Dadra e Nagar Haveli, Damão e Diu são os territórios que compunham a Índia portuguesa no século XX.

(3) “sossegado”, que evoluiu para “susegad” em inglês local, é uma palavra muito popular em Goa que expressa a forma calma, no limite preguiçosa, dos goeses encararem a vida e o trabalho.



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