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Paulo de Lencastre

A Velhinha de Sófia

Updated: Mar 15

Pensou que iria envelhecer numa casa de terceira idade, partilhando com os seus camaradas de juventude as memórias da luta que trouxe um novo sol à humanidade. Afinal está na rua.

Fotografia de Cosme Almeida.


A velhinha em frente ao palácio da justiça de Sófia não estava a pedir. Recebeu a minha moeda com um sorriso doce, e em troca chamou as suas pombas para uma parada voadora de agradecimento. Era como se por um instante o tempo recuasse, o seu boné de pala reganhasse a estrela vermelha, e ela voltasse a liderar uma brigada de jovens camaradas, homens e mulheres, porque a revolução proletária também libertara as mulheres da subjugação.    


O leão ao fundo, guardião do palácio e símbolo intemporal da nação búlgara, é seu amigo também. É o último sinal de identidade que lhe resta. Acompanhou os seus pais no brasão do velho reino. Acompanhou-a a ela na bandeira da revolução. Vai acompanhar os seus netos num futuro que ela já não compreende mais.     

 

Se esta velhinha tiver 80 anos nasceu em 1940, durante a segunda guerra mundial. Nessa altura quem governava a Bulgária era um rei, o Czar Boris. Segundo a sua mãe, de sangue judeu, Boris era um homem bom. Teve de aceitar uma aliança imposta por Hitler, mas sempre conseguiu iludir a ordem nazi, e assim evitou deportar os judeus búlgaros para os campos de concentração na Alemanha. 


Quando foi para a escola aprendeu que o Czar Boris era um opressor do povo. Cresceu como personagem de uma nova Bulgária, livre e socialista, liberta pelo povo irmão da União Soviética. Participou na reconstrução da cidade bombardeada. Esteve nas fileiras de radiosas jovens que, de mão em mão, faziam chegar ao destino as colossais pedras dos três grandes edifícios neoclássicos estalinistas que formavam a sede do partido comunista em Sófia. Desfilou nas paradas do partido em frente à estátua monumental de Lenine e ao mausoléu de Dimitrov, o grande líder búlgaro do movimento comunista internacional. Habituou-se, do lugar onde agora vive com as suas pombas, a olhar orgulhosa para a grandeza da revolução socialista, e para a nova ordem que na sua Sófia natal ajudara a criar. 


Acreditou pertencer a uma vanguarda iluminada, criadora de uma sociedade nova, onde todos passavam a nascer com a garantia de uma vida feliz, sem desigualdades opressoras. Os seus pais tinham sido despojados pelo partido da sua pequena gleba nos arredores de Sófia. Em contrapartida receberam do estado o apartamento onde ela cresceu. Os pais eram devotos cristãos ortodoxos, nostálgicos da velha ordem e do Czar Boris. Mas ela explicava-lhes que a religião era o ópio do povo. Que a perda da terra era o pequeno preço a pagar por um mundo mais justo e mais livre, sem ricos nem pobres. E foi assim, com a consciência tranquila, que evitou denunciá-los ao partido como contrarrevolucionários, tal qual era a obrigação de uma jovem comunista. 


Foi enfermeira. Foi destacada pelo partido para trabalhar bem longe da sua cidade natal. Casou com um camarada, operário metalúrgico. Ele morreu cedo, com um cancro, agora atribuído às radiações de Chernobil. O seu filho formou-se em engenharia em Moscovo e trabalhou na Líbia.  Quando caiu o comunismo ficou sem trabalho, deprimiu, hoje tem uma pequena empresa de restauro de casas. A sua neta nasceu em Moscovo, é guia turística, fala inglês, fuma marijuana e, por um acaso do destino, mostra aos turistas curiosos do passado o humilde apartamento onde a família vivia.


Fotografia de Wikipedia.


E ela? Pensou que iria envelhecer numa casa de terceira idade, partilhando com os seus camaradas de juventude as memórias da luta que trouxe um novo sol à humanidade. Afinal está na rua. Teve de vender o apartamento, a preço de desespero, para que a família não passasse fome.


Viu o mausoléu do camarada Dimitrov ser implodido. Viu a estátua do imortal Lenine ser apeada da praça principal. No lugar de Lenine está a estátua de Santa Sofia, a recuperada padroeira da cidade, que hoje abençoa a antiga sede do partido, reconvertida no parlamento da nova democracia.


O ex Czar Semião, filho do Czar Boris, regressou, foi eleito Primeiro Ministro – a sua neta votou nele – e assinou a entrada da Bulgária na Europa capitalista. A religião cristã ortodoxa voltou a ser a fé de todos, inclusive a dela, que já não está em idade de querer mudar outra vez o mundo.


Sófia, agosto de 2019

Paulo de Lencastre

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2 Comments


marina.prieto.afonso
Jan 03

Que maravilha de texto, muito bem escrito, com uma ponta de nostalgia para nos levar de viagem, a objetividade suficiente para percebermos a história e o seu contexto, e um romantismo de fundo que nos leva a querer ler mais! Obrigada, Paulo! Esperamos por mais histórias 🧡

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Vera Wander
Vera Wander
Jan 02

Que história linda!

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