Um dia chega uma carta a Ipanema vinda da Alemanha. A guerra tinha terminado. Estavam salvos. Tinham ficado no lado certo do destino. Trocaram fotografias dos filhos que entretanto nasceram. Marita na praia de Ipanema, Jürgen na neve segurando os skis.
Praia de São Francisco, Niterói, Rio de Janeiro (1968).
Rua Garcia de Ávila, Ipanema, Rio de Janeiro (2024). Um casal chega para a sua refeição do fim do dia. É um café bem moderno, proposta saudável, “brunch all day”, estilo escandinavo. Sentam-se numa das mesas exteriores, na calçada, ela voltada para a rua, ele voltado para ela.
Um drone sobrevoa-os. Moram ali ao lado, 150 metros a pé, numa casa dos anos 40, resistente romântica no meio de prédios altos. Era dos pais dela. Nasceram há 90 anos, em abril de 1934, no mesmo ano e no mesmo mês, ela é mais velha dez dias. São ambos altos, ele um metro e oitenta, ela de salto alto chega lá. Foi assim que se encontraram e deram o primeiro beijo.
O encontro começou há cem anos, bem longe dali, ainda não eram nascidos. São Luís do Maranhão. Um jovem engenheiro alemão especializado em usinas de cana de açúcar leva a mulher a um jovem médico em início de carreira no mais tradicional e longínquo Brasil do Nordeste. O médico trata-a, a mulher alemã, grata, convida a mulher do médico para um jantar. Fica um fio de amizade ténue entre os dois casais. Mas era uma relação impossível, nada mais poderia acontecer.
O jovem médico deixa o atraso nordestino e vai trabalhar para o Rio cosmopolita dos anos 30, na aurora promissora da era Vargas. O jovem engenheiro obedece a um chamamento da mãe que lhe anuncia uma Alemanha nova que estava a renascer das cinzas pela mão de Hitler.
Não sabem mais uns dos outros durante mais de quinze anos. Um dia chega uma carta a Ipanema vinda da Alemanha. A guerra tinha terminado. Estavam salvos. Tinham ficado no lado certo do destino. Trocaram fotografias dos filhos que entretanto nasceram. Marita na praia, garota de Ipanema, Jürgen na neve segurando os skis. Tinham os dois 15 anos. Marita começou a namorar com a fotografia. Jürgen era bonito, olho claro, e os skis davam-lhe um ar masculino diferente que mostrava às amigas com orgulho. Marita na Alemanha fazia um sucesso, magra, esguia, olho negro e cabelo ao vento era uma sereia a sair do mar na areia do paraíso.
Jürgen nascera pouco depois dos pais chegarem à Alemanha, regressados do Brasil. Chegaram num momento de união alemã, ávida de se libertar dos tributos de guerra impostos pela França, Inglaterra e Estados Unidos, os vencedores da guerra de 1914-1918. Hitler era o líder que despontava como capaz de rasgar o tratado de Versalhes e fazer renascer a nação. Já depois dos pais chegarem, o partido Nazi ganhou finalmente as eleições em 1933, legitimando Hitler como o chanceler incontestável da nova Alemanha.
Uma Família de Classe Média, romance de Liselotte Wolff, a mãe de Jürgen.
Jürgen abriu os olhos em tempo de guerra. Nascera em 1934 em Giessen, uma pequena cidade do estado do Hesse, no ocidente próspero da Alemanha, próxima de Frankfurt, para onde os pais vieram quando chegaram do Brasil. Tinha 5 anos quando Hitler em 1939 invade a Polónia para recuperar o território perdido em 1918. Aprendeu com a mãe a defender-se do inexplicável. Não convinha ser muito íntimo do menino da frente porque se dizia que era judeu. Ser judeu era a família ter-se afirmado como judia antes, ou ter sido denunciada como judia depois. E neste caso o ónus da prova era do acusado. De vez em quando desapareciam, não se sabia para onde, talvez para um país onde não fossem perseguidos. A família de Jürgen passara incólume por entre estes pingos de chuva a arder.
Mais tarde, na escola primária, havia um livro que ensinava a distinguir um judeu, pela cor do cabelo, pelo nariz adunco, pelos olhos escuros redondos enterrados em pálpebras caídas. A escola primária de Jürgen já é feita do lado oriental da Alemanha, em Aschersleben, uma pequena cidade da Saxónia, próxima de Leipzig. Era a terra da família da mãe, para onde se mudaram no início da guerra em 1939. O pai foi trabalhar como funcionário público, e depois como engenheiro numa fábrica de celuloide que começou a fazer discos de música flexíveis de vinil. Jürgen brinca com as cinco tartarugas que viviam no quintal dos avós, aprende a dar de comer aos oito coelhos, e descobre como salvar os pardais de morrerem afogados presos no repuxo de água do lago. Sofre pela primeira vez com a morte da avó, que expirou dizendo “vamos ganhar esta guerra”. Quando a guerra chega ao coração da Alemanha o pai decide partir para Teplice, já na Checoslováquia. Foi trabalhar numa fábrica de granadas para a artilharia antiaérea. Jürgen, desenraizado, encanta-se com o piano que aprende a tocar no conservatório Beethoven da cidade, onde a mãe o inscreveu para lhe completar os dias.
Tinha 11 anos quando a guerra terminou. A Europa foi partilhada pelos Aliados vencedores. O pai tinha voltado da Checoslováquia, integrada na zona de ocupação russa. A Alemanha foi dividida. Leipzig ficara na zona de ocupação americana. Numa noite o pai sentiu que as lagartas dos tanques protetores já não eram as suaves e almofadadas de borracha dos americanos. As lagartas dos russos eram de metal vivo e faziam muito barulho na calçada de pedra. Conseguiu fugir sozinho para o lado ocidental. Os russos chegaram no dia seguinte, ocuparam a casa, e desterraram a mãe, Jürgen e a irmã para uma dependência na porta dos fundos.
O oficial russo era bom. Era engenheiro civil formado na Universidade de Moscovo. Começou a ensinar a Jürgen porque é que o nazismo é mau e o comunismo é bom. Em troca dos bons resultados ensinou-lhe xadrez e russo. Tratava-o como um filho adotado, uma espécie de filho segundo, tinha um filho chamado Yuri, um ano mais velho que Jürgen, os nomes eram os mesmos, só que em russo e em alemão. A mulher dele era muito bonita, morena, cabelo negro, comprido até à cinta, e olhos azuis. Quando mais tarde Jürgen viu a primeira fotografia de Marita, uma bela menina esguia vestida de cor de mel com bolas brancas, lembrou-se da mulher do oficial russo e pensou que um dia também queria ter uma mulher assim.
Durou dois anos a catequização. Até que um dia o pai de Jürgen conseguiu um visto russo para que a mulher e os filhos viessem ter com ele. Já antes tinha conseguido explicar aos americanos que não era criminoso de guerra nazi porque apenas trabalhara para o exército e não para os serviços secretos. Agora recorria à complacência dos russos, a saída de mulheres e crianças não significava a perda de homens para a guerra.
Passaram-se muitos anos. Já estamos no final dos anos 50. Um dia a família de Marita foi visitar a Europa. Iam especialmente a Portugal porque um avô de Marita era português, de Aveiro, emigrado para o Maranhão. Levaram a filha para conhecer os primos. E aproveitaram para ir visitar os amigos alemães. Voaram até Düsseldorf. Encontraram-se ao jantar num restaurante de luz coada. Os olhos negros dela enfeitiçaram Jürgen. Disse-lhe que passava à noite no hotel para saírem.
O Emigrante, romance autobiográfico de Jürgen Wolff (2010).
Marita já o tinha esquecido. Tinha arrumado um namorado almofadinha (1) em Ipanema. Mas a curiosidade levou-a a dizer que sim. Claro que não podia dizer aos pais. Estavam no quarto ao lado, a dormir, saiu sem ser notada. Foram para a discoteca, dançaram até à exaustão. Durante 10 dias. Na despedida Jürgen disse-lhe: “Eu vou casar com você…”
Marita voltou ao Brasil. Desfez o namoro com o almofada e disse aos pais que queria ir para a Alemanha para casar com o alemão. O pai disse que não. Mas face ao inevitável, decidiu, sem lhe dizer nada, comprar uma viagem para o alemão vir. Quando Marita foi com os pais buscar Jürgen ao aeroporto não sabia quem ele era. Só o tinha visto de noite, agora parecia-lhe muito branco, demais.
Casaram na igreja de Nossa Senhora da Paz em Ipanema. No dia anterior Jürgen desmaiou a provar o paletó. Vinha de um frio gelado do inverno alemão, aterrou no calor tórrido do Rio no verão. Voltaram casados para a Alemanha, para Aachen, bem a ocidente, uma nação a renascer novamente das cinzas, agora num projeto de aliança dos países capitalistas liderada pelos Estados Unidos. Do outro lado, a oriente, onde Jürgen terminara a guerra, imperava a outra aliança, a dos países comunistas, liderada pela Rússia. Berlim, a velha capital do império alemão, era símbolo da partilha, dividida a meio por uma vala que, de vez em quando, amortalhava quem a queria atravessar, baleado pela polícia. E onde mais tarde os comunistas construíram um muro para evitar sem sangue a tentação capitalista.
Basko, o cão de Jürgen que emigrou com ele da Alemanha para o Brasil (1961). “Os melhores homens são os cães” (Jürgen Wolff, Lascas, 2015).
Aachen, abril de 1959. Cá fora neva. Estão 15º negativos. Um par de recém-casados, recém-chegados do Brasil, acabados de fazer 25 anos, entra num edifício em ruínas bombardeado na guerra. É um cortiço de quartos humildes alugados a preços módicos. Sobem as escadas até ao quarto andar. Quando Marita entra no quarto de Jürgen fica apreensiva. A cama velha de corpo e meio era boa para namorar mas apertada para dormir. E depois só uma carteira escrivaninha para fazer tudo o resto. Um banco com um fogareiro elétrico em cima fazia de cozinha. Não tinha banheiro (2), tinha uma pia no quarto e uma latrina no exterior. A chegada de Marita veio perturbar a rotina do outro ocupante do quarto, um rato amigo de Jürgen que subia por um cano desativado do piso térreo até ao quarto andar. Partilhavam a comida, o rato adorava a pele das salsichas que Jürgen lhe separava com cuidado. Jürgen ainda estudava, física. Conseguia pagar o quarto com um mísero salário de assistente de assistente. Marita já era formada, em química, era despachada e rapidamente arranjou emprego na universidade a ganhar cinco vezes mais do que Jürgen. Quando ele se formou, em 1960, Marita convenceu-o a voltaram para o Brasil. Havia esperança. Brasília foi inaugurada. Jürgen muda para Kurt, o seu outro nome, herdado do pai, que na nova terra a língua enrola-se a dizer Jürgen. Nasceu-lhes um filho, que casou com uma carioca morena, que lhes deu uma neta loira como uma alemã, e vivem felizes para sempre…
“A minha fotografia preferida” (Marita): Kurt Jürgen Wolff e Maria Theresa Mendonça, campeões brasileiros de natação, categoria + 85 anos, na Piscina do Iate Clube do Rio de Janeiro (2022).
…não tanto assim. Em 1961 o Brasil aproxima-se de Cuba e condecora Che Guevara. Em 1964 dá-se o golpe de estado que instala uma ditadura militar para proteger o país do comunismo. Jürgen sente o cheiro da guerra, e apesar do pai de Marita ser médico e amigo do novo presidente Castelo Branco, partem para a Suíça. Mas em 1969 o pai de Marita tem um enfarte, ela é filha única, têm de voltar. Jürgen, com 35 anos, percebe que não pode andar sempre a fugir das guerras, e instalam-se definitivamente ao sol de Ipanema, com ditaduras e revoltas, samba e bossa nova, Vinicius e Tom Jobim (3). Monta uma empresa de construção naval, que trabalha para a marinha de guerra brasileira e instala canhões em navios escola. Relembra sonhando que aprendeu piano em menino quando estava na guerra, que com o seu irmão fox terrier brincou feliz com tartarugas, coelhos e ratos, andorinhas e pardais, em casa dos avós, ao lado da guerra mais mortal que a humanidade viveu. Enquanto o seu pai trabalhava numa fábrica de granadas.
“Tudo pertence a tudo e nada tem uma existência isolada” (Jürgen Wolff, A Filosofia da União, 2015).
Fotografia de Andrea Lavourinha, amiga de infância de Laura Wolff, a neta do casal, na casa de Ipanema.
Ipanema, Rio de Janeiro, setembro de 2024
Paulo de Lencastre
Notas do editor:
(1) almofadinha é uma expressão carioca, entre o jocoso e o ofensivo, que quase não se ouve mais, para designar os tipos afetados, cheios de salamaleques e não-me-toques (Pedro Migão, Histórias Brasileiras, 2013).
(2) banheiro no Brasil significa casa de banho em Portugal.
(3) referência à música "Garota de Ipanema", com letra de Vinicius de Moraes e música de António Carlos Jobim (1962):
Fotografias de época tiradas do site de Jürgen Wolff aqui.