Diluíra-se na água que escorreu para a terra? Ou eram os seus olhos que estavam a ficar baços demais? Talvez fosse mesmo Lakshmi a chamá-la, como Anshi pedira a Vishnu seu marido? Adormeceu a olhar para o lume a ouvir a chuva bater. E sonhou que tinha morrido.
Fotografia de Bharat Gupta.
O marido morreu. Já tinha feito cem anos. Rezou a Vishnu, o deus misericordioso, conservador do universo, para que o reencarnasse num antílope negro. E que a viesse buscar em breve para correrem livres pelo deserto de Judhpur. E se amassem como sempre se amaram. O seu corpo começava a estar velho demais para viver esta vida. E os seus olhos já viam baço demais o sol e as flores.
Na parede sagrada da casa da cozinha registou com a mão direita, a mais vigorosa, a sua prece. Era a parede de Lakshmi, a mulher de Vishnu, a deusa da prosperidade. Na monção, quando a chuva encharcava a terra, e os homens semeavam os campos da família, as mulheres da casa recolhiam-se naquele abrigo rude para cozinhar. Até que viesse o novo sol da primavera e saíssem para o pátio, e se abrigassem da luz e do calor à sombra da árvore grande e do coberto sem paredes feito com os seus ramos.
Para já enterrou o corpo do marido à sombra do irmão, um “khejri” que o sogro mandou plantar quando o filho nasceu. O marido era o filho mais novo da casa. E na tradição “bishnoi” é o mais novo rapaz que fica com os pais para lhes cuidar da velhice e herdar as terras.
Chegou àquele lugar quando casou. Tinha quinze anos. Mas era daquela terra. As famílias eram próximas, conheciam-se. Foi um “casamento arranjado” na tradição hindu, em que a mulher vai morar para casa dos sogros no dia do casamento. Ficou ali enquanto nora e, quando a sogra morreu, passou a matriarca. Recebeu dela o brinco de ouro, símbolo das matriarcas da tribo, que trazem na narina esquerda, que é o lado do coração.
É uma mulher bishnoi. Chama-se Anshi Devi, em sânscrito quer dizer que é uma deusa que é parte da terra. A sua tribo foi criada há 500 anos pelo guru Jambheshwar, um profeta hindu que definiu como propósito respeitar a vida, as plantas e os animais. Mesmo que fosse necessário pôr em causa crenças tão ancestrais como queimar os corpos dos mortos e lançar as cinzas nas águas do Ganges, ou de outros rios quase tão sagrados da Índia. Queimar corpos é cortar árvores, devastar florestas, e por isso os corpos bishnois são enterrados para alimentar as raízes e os vermes da mãe natureza. E reincarnar nela no próximo ciclo de vida, com a missão bem concluída do ciclo defunto. Diz-se que o profeta reencarnou num antílope negro, que por isso é o animal sagrado dos bishnois.
O khejri é o exemplo maior da árvore sagrada. Os seus frutos, uma vagem com ervilhas carnudas, cozinhada, é uma das comidas mais nutritivas da dieta vegetariana dos bishnois. A casca também se come, quando faltam os frutos e a fome aperta. As folhas são forragem boa para as vacas, as cabras e as ovelhas. E as raízes fixam muito o nitrogénio, fertilizando a terra agrícola.
Anshi tem uma heroína, deusa de nome como ela. Amrita Devi quer dizer deusa imortal. Amrita morreu há 300 anos, abraçada a um khejri que queria salvar. “Se esta árvore for salva de ser cortada pelo custo da minha cabeça, será uma boa morte”. Foi decapitada pelos soldados do marajá de Judhpur, em frente das suas duas filhas, que lhe seguiram o exemplo, com outras mulheres, que arrastaram os maridos, numa chacina de centenas de corpos retalhados. Quando o marajá soube, mandou suspender o corte dos khejri para a construção do seu palácio. E decretou que na terra do bishnois ninguém poderia mais caçar ou cortar árvores.
Hoje já não precisa de ser mártir de sangue como Amrita. Precisa apenas de ser a representante familiar de Laksmi, a deusa da prosperidade conseguida na plena conservação da mãe natureza. Os bishnois protegem-na acima de tudo enquanto fêmea geradora da vida. Uma mulher bishnoi deve descansar cinco dias durante a menstruação, e deve ficar isolada trinta dias com o seu filho quando ele nasce. São as duas primeiras das vinte e nove regras de vida deixadas pelo profeta fundador.
O caminho para chegar a sua casa atravessa o paraíso. Os corsos saltam entre os arbustos secos da terra árida. Os pavões atravessam a estrada, uma língua estreita de asfalto quase apagada pela areia do deserto. A terra agrícola é preservada. Não usam químicos. Comem nos thalis, os pratos redondos da Índia, uma alquimia multicolor de lentilhas, sésamo, trigo e milho painço, misturados com verduras secas como as vagens do khejri. Bebem chá frio de canábis e sumo de ópio de papoila, numa embriaguez suave que os deuses toleram.
As vacas, sagradas, dão-lhes o leite, e ainda as fezes secas com que constroem as casas e acendem o lume. As cabras e as ovelhas também são da família. Ninguém toca num animal. Não se castra um boi, é um dos vinte e nove princípios. Não cortam uma árvore verde. Só usam madeira das árvores mortas ou tombadas pelas chuvas. Todos nós, animais e plantas, temos igual direito à vida na nossa terra. São contra as castas. E o fundador até era um “rajput”, a casta dos guerreiros. Os seus seguidores formam uma família de todas as origens e adotam o sobrenome comum de Bishnoi (1).
Agora é a vez do filho mais novo. Já casou e a nora já lhes deu um casal de netos. A família está assegurada para duas gerações. Anshi já pode passar à nora o brinco de ouro e pensar em morrer.
Quando pela última vez rezou a Vishnu pela morte do marido, cumpriu o ritual. Marcou na parede o sinal sagrado da cruz de Lakshmi e recebeu dela com a mão aberta a energia de prosperidade e do sucesso para a família.
Só que o corpo está a ficar muito velho. E as mãos mais novas já são da nora e da neta. As últimas suas estão a apagar-se na parede sagrada.
Junho. As primeiras chuvas da monção abateram-se forte sobre a terra. Os homens partem para as sementeiras. As mulheres recolhem-se na casa para cozinhar. Ao entrar, Anshi já não viu mais a sua mão na parede sagrada. Diluíra-se na água que escorreu para a terra? Ou eram os seus olhos que estavam a ficar baços demais? Talvez fosse mesmo Lakshmi a chamá-la, como Anshi pedira a Vishnu seu marido? Adormeceu a olhar para o lume a ouvir a chuva bater. E sonhou que tinha morrido. Ainda se aconchegou no seu corpo quando o sentiu ser enterrado enrolado num lençol branco ao lado do marido, por baixo do kajhri, na terra regada. Diluiu-se na água, abriu os olhos e viu-se a nascer de uma linda gazela negra que se abrigara do calor húmido e abrasador à sombra da árvore para parir. Ficaram trinta dias guardadas na casa da cozinha. E ao fim de trinta dias partiu livre atrás da mãe pelo deserto de Judhpur. Ao fundo viu um jovem antílope negro e aconchegou-se a ele.
Judhpur, maio de 2024
Paulo de Lencastre
(1) Bhavia Bishnoi, 2018, The 29 Commandments that Define the Bishnois – India’s First Environmentalists. Link aqui.
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