Onde Jorge Amado entronizou a sua sombra como o paraíso da casa, lugar eterno onde podemos descansar, sem foices nem martelos, nem estrelas redentoras em bandeiras, só com o arco e a flecha de um índio cupido apaixonado por uma sereia.
A mangueira morreu. Teve de ser cortada. Mas já do seu tronco brotam ramos, folhas e flores. Na terra descansam as cinzas de um poeta e da sua amada. Um sapo gigante sai da terra, é o guardião do cemitério.
“Aqui, neste recanto de jardim, quero repousar em paz quando chegar a hora. eis meu testamento.”
“Sento-me contigo no banco de azulejos, à sombra da mangueira, esperando a noite chegar, para cobrir de estrelas teus cabelos, Zélia Eva envolta em lua.”
Jorge e Zélia não acordam, sonham. À volta andam turistas que profanam o lugar. Mas o jardim agora é para eles. São os turistas de Salvador. Isabela, uma velha professora infantil chilena, senta-se no banco e fala desencantada das crianças, quase bebés, que os pais de hoje entregam às 7 da manhã na escola e levam às 7 da noite de volta para dormir. Helena, uma jovem médica portuguesa, que mora na Alemanha para ganhar melhor a vida, deixara desde manhã o marido alemão a dormir no hotel para viver um dia inteiro na magia do candomblé. Armando, o motorista guia turístico vestido de branco, leva para a próxima experiência um gringo velho curioso com duas jovens cariocas que querem uma consulta com uma mãe de santo de verdade. O guia conduz sonolento. Traz uma morena redondinha ao lado a falar com o celular (2). Quando passam no lago do Tororó, explica num monólogo autista ao gringo que vai atrás quem são os oito orixás estátuas que se passeiam nas águas (1). As duas cariocas, cansadas do dia de praia, adormecem.
Dona Maria atende num beco da cidade de Salvador. A casa ao lado está à venda a esboroar-se. Entra-se, somos recebidos por Cosme e Damião meninos, entronizados na sala de espera com velas a arder e flores de girassol. Armando manda entrar. Dona Maria aparece. Chama primeiro o gringo velho, leva-o para o seu quarto privado, senta-o à mesa redonda, olha-o de frente, e joga os búzios… É filho de Xangô, é o seu orixá de cabeça, que lhe dá boa proteção, vida longa, sem doenças, boas finanças, nenhum perigo à vista, o quinto neto que está para lhe nascer chegará em paz. Ele sai em paz também. E paga feliz ao Armando a sua conta. As duas meninas cariocas, mais vacinadas para estas viagens turísticas ao sagrado, não recebem a mesma narrativa intensa da mãe de santo, que as atende em metade do tempo. É que Armando, guia e agente, para as convencer, só lhes levou metade do preço da consulta que cobrou ao gringo.
Ir a Salvador é encontrar Jorge Amado na catedral do candomblé. Amado pela terra, pela gente, pelas mães de santo, apaixonado por Zélia Gattai. Na casa do Rio Vermelho receberam políticos, cantores, escritores. Foi amigo de Neruda, de Márquez, de Torga, de Saramago, num entendimento de génios. De Torga, mais velho, disse quando morreu que era uma injustiça não ter sido ele o primeiro Nobel em português. Quando o prémio veio para Saramago, mais novo, ele, já velho, cansado, doente, deprimido e quase cego, quando Zélia lhe disse ao ouvido, reprimiu uma lágrima, despertou do torpor, abriu os olhos, e ditou à filha Paloma a última carta que mandou ao amigo.
Com Zélia correu mundo. A casa é uma iconografia sincrética de objetos, de artesanatos. Junta Rosa Ramalho de Portugal com Marx e Lenine de Moscovo. E é também a simplicidade simples. Um quarto despojado, uma cozinha larga cheia de comidas coloridas, uma sala de televisão, e a sala onde escrevia. A ligação com a máquina de escrever era íntima, antropomórfica, numa carta a um amigo fala que ela, a nova, não tem cedilhas, lhe faltam acentos. Vai ter de se adaptar à nova companheira.
Com Zélia foi fácil. Partilharam cúmplices os ideais da anarquia e do comunismo quando, em 1945, se conheceram, e logo casaram. Acabara a guerra. Vinham de casamentos de verdes anos, encontraram-se numa paixão madura que os juntou até ao fim da vida. Abandonaram os filhos que tinham e fizeram novos. Partiram para a Europa, viveram em Paris e em Praga, procuraram discernir no cerne do confronto onde estava o bem e onde estava o mal.
A Casa do Rio Vermelho foi o refúgio do regresso, o abrigo onde pararam depois de correrem o mundo e o tentarem mudar. O retorno às essências. Onde não há mal nem bem, há vida. Onde orixás e exus convivem com os homens no pecado e na bem-aventurança. Ela é filha de Oxum, a sereia do leque espelho, a deusa mulher, dos rios e das águas doces, vaidosa, sedutora e fértil. Ele é filho de Oxossi, como lhe revelou a Mãe Senhora, o deus da selva, do arco e da flecha. Ela apaixonada. Ele, ateu e comunista, defensor dos terreiros, da liberdade de expressão religiosa, contra as versões mais cegas do cristianismo aburguesado, incapazes de acolher o sangue novo e popular das tradições sincréticas afro brasileiras. Agora, mais velho, aconchega-se na sua terra, na sua mulher, no perfume gorduroso dos seus sabores, na volúpia de Dona Flor, no cravo e canela de Gabriela.
O Rio Vermelho é o bairro mais boémio de Salvador. Vem da colina e desagua na praia. Os dois amantes desceram muitas vezes a ladeira. Vão ver os saveiros no mar, os capitães da areia, os ricos roubados pelos pobres, os meninos ladrões que são heróis, os padres santos que os confessam, os recriminam, e os abençoam. Os esgotos da cidade escorrem em choro negro na areia da praia. Sentados num banco da praça, à sombra da capela antiga de Santana, que é a deusa avó Nanã protetora dos mortos, Jorge e Zélia, e o seu cachorro, olham o mar.
O que vêm? O que lembram? Com que sonham? Ao fundo a igreja nova da paróquia. Ao lado a casa de Iemanjá, a deusa mãe do mar. Rezaram nas duas. Para salvar a capela velha, que ia ser demolida por atrapalhar o trânsito e já não servir para rezar. Hoje, dia 1 de fevereiro, quando o sol cair no horizonte, as três casas das deusas vão estar abertas. Hordas de devotos vão descer as ladeiras, vindos das favelas, das ruas estreitas, dos prédios altos encaixados nas colinas, feitos para ricos e gringos verem em segurança, nas coberturas das casas e dos hotéis, com whisky gelado e ar condicionado, o povo em festa. Os mendigos, abrigados na praia, quase sem teto, debaixo de uma canoa quando chove, não precisam de descer. Estão mais perto de Iemanjá, que a todos acolhe, na sua noite, e depois no seu dia. É um mar de gente, já não se distingue o que é rua, o que é praia, e o que é mar. A baiana de branco manda ao gringo um acarajé e um coco verde pelo filho menino. As deusas juntam os homens para os perdoar.
A mangueira da casa do Rio Vermelho é uma heroína discreta neste vendaval. Traz no DNA a história do mundo no espaço e no tempo. Nasceu selvagem na Índia antes de bichos e homens. Deu-lhes sombra e frutos quando apareceram nas clareiras. Deixou-se plantar há 5 000 anos pelos primeiros civilizados. Viajou com mercadores persas e árabes para África e com navegadores portugueses e escravos africanos para a América. Para se misturarem com os índios novos do lado de cá e criarem o Brasil. Faz parte, sem pecar, desta intensa sinfonia no Novo Mundo. Onde Jorge Amado entronizou a sua sombra como o paraíso da casa, lugar eterno onde podemos descansar, sem foices nem martelos, nem estrelas redentoras em bandeiras, só com o arco e a flecha de um índio cupido apaixonado por uma sereia. A mangueira do Rio Vermelho morre e renasce há mais anos do que nós. É a avó serena que dá paz aos sonhos do poeta e da sua amada quando traz a brisa para os embalar.
Salvador, setembro de 2024
Paulo de Lencastre
Nota do autor:
(1) Os oito orixás do Dique do Tororó são os deuses maiores do candomblé baiano. Percebi que são quatro mulheres e quatro homens. Iemanjá é a deusa das deusas, a deusa do mar, a deusa mãe dos outros deuses, a matriz de tudo, Nossa Senhora. Nanã é a deusa avó, Santana, a deusa dos pântanos, das águas paradas, que ajuda os velhos e os mortos a partirem da vida. Oxum é a deusa filha, das águas doces, dos rios, filha de Iemanjá com Oxalá, a deusa linda, sedutora e fértil, da Conceição ou da Aparecida. Iansã é sua irmã, mais nova e mais vigorosa, a deusa dos ventos, dos raios e das tempestades, a Santa Bárbara mártir, morta por não renegar a fé. Oxossi, seu irmão mais próximo, o orixá de cabeça de Jorge Amado, é o deus primitivo, da selva, do arco e da flecha, o caçador da noite, São Sebastião. Ogum é o irmão do dia, o deus másculo da guerra, São Jorge. Xangô é o deus pai, sábio, da justiça, da lei divina, São Jerónimo, que distinguiu os evangelhos bons dos maus. Oxalá é o filho, o deus bom, Jesus. Cada orixá tem os seus exus, espíritos que trabalham na vibração dos deuses e vêm à terra para ajudar os homens. São pretos velhos, caboclos, crianças como Cosme e Damião, mas também podem ser anjos maus, demónios, enviados dos deuses para tentar os homens e os ensinarem a conviver com o bem e com o mal.
Nota do editor:
(2) celular no Brasil significa telemóvel em Portugal.