A Índia dos deuses pode ser cruel para os doentes, para os estropiados, para os mendigos. Estão a pagar nesta vida o mal que fizeram em vidas passadas. Jesus, que acolhe e cura o leproso, o cego, o paralítico, pode assim ser visto aqui como um deus dos desvalidos.
Nicholas é um velho francês de barba branca: por falar francês e ser da minha idade, conversamos de imediato. Vem com a mulher todos os anos passar 3 meses a Varanasi. De janeiro a abril por causa das monções. Depois vai para Lisboa porque a filha casou com um português e apaixonou-se pelo país. E, no tempo que falta, vai para a sua França natal, Cognac, a terra do álcool feito espírito. Amigo Nicholas, o que vem fazer a Varanasi todos os anos?
A mulher de Nicholas acorda às 5 horas da manhã todos os dias para ir trabalhar para as Missionárias da Caridade da Madre Teresa de Calcutá. Não precisa de avisar que vai. Quando chega, já alguém comprou as comidas com que ela irá prepara a primeira refeição dos pobres do dia. Nicholas passeia por Varanasi, vem até à loja das sedas que batizámos de nosso “meeting point” na animada rua da Bhadaini Ghat. À tarde, quando a mulher volta, vão juntos curtir esta cidade onde a morte se vive ao lado de lojas de essências e perfumes, de sedas e de jóias, de restaurantes e de hotéis de charme, para quem teve a sorte de nascer nos lugares ao sol da vida.
Nessa tarde fomos visitar as Missionárias da Caridade. Viemos à Índia para conhecer a Índia hindu, do yoga e do tantra, os seus templos, os seus ashrams, os seus gurus. Sair deste quadro para conhecer uma Índia católica é um pouco ver como o catolicismo asceta consegue criar raízes nesta terra de fé mágica, alegre, politeísta, onde os bichos podem ser deuses.
Recebe-nos uma irmã de sari branco debruado a azul, a marca ícone da ordem. É uma mulher ainda jovem, sorridente, que nos olha com serenidade. Queríamos só conhecer… Como se chama? Rosarina, foi a Mãe Teresa que me deu o nome. Conheceu-a? Não, mas ela inspira-me, está sempre presente no nosso dia a dia.
A Irmã Rosarina conta-nos a sua história, entrelaçada na de Mãe Teresa. A jovem irmã Teresa trocou os pobres dos ricos da airosa Dublin pelos pobres dos pobres de Calcutá. Rosarina gostou de ser transferida da serena Agra do Taj Mahal para o drama de Varanasi. A casa fica quase na margem do Ganges, não longe da praça onde os corpos dos mortos são queimados e lançados em cinza ao rio. São corpos de ricos e remediados, os pobres não podem pagar o ritual purificador. Vagueiam pelo fumo das fogueiras, à espera de uma esmola da família dos defuntos, e da sua própria morte libertadora. Se morrerem por ali talvez possam ter direito a ser queimados, à custa das dádivas dos turistas. Desde que não sejam leprosos, nem mordidos de serpente, para não contaminar o rio sagrado.
A Índia dos deuses pode ser cruel para os doentes, para os estropiados, para os mendigos. Estão a pagar nesta vida o mal que fizeram em vidas passadas. Jesus, que acolhe e cura o leproso, o cego, o paralítico, pode assim ser visto aqui como um deus dos desvalidos. As irmãs da caridade têm de ser pobres como os pobres a que se dedicam. O seu sari é confecionado por leprosas resgatadas à rua, igual ao das mulheres que limpam das calçadas o lixo e os cadáveres dos mendigos moribundos. A irmã Rosarina explica: nós não queremos converter ninguém. Queremos que um hindu seja um melhor hindu, que um muçulmano seja um melhor muçulmano, que um budista seja um melhor budista, que um cristão seja um melhor cristão. Partilharmos juntos, rezarmos juntos, sofrermos juntos, trabalharmos juntos, com os “pobres dos pobres”, como nos ensinou a Mãe Teresa. Nas paredes os quadros reforçam este olhar. Quem não seja cristão vê um deus com asas matando um demónio e um guru fazendo yoga. Mãe Teresa, qual swami, saúda-os iluminada. São Jesus e São Miguel. Namastê!
Quisemos deixar um dinheiro de agradecimento e ajuda. Irmã Rosarina não estava a contar. Explicou que os donativos eram muito controlados. Foi buscar um caderno de recibos. Precisava dos nossos passaportes. Preencheu cuidadosamente. E assinou: “que Deus vos abençoe”.
Varanasi, março de 2023
Paulo de Lencastre
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