Um sagui, que o Tio Miguel lhe trouxe do Recife, e que compartilhou a sua vida e o seu bolso de lapela até morrer de cirrose, empoleirava-se no copo. E, de cabeça para baixo, com a leveza de um trapezista, lambia a lágrima doce do vinho generoso, sem grandes interdições.
Algum dia de um junho quente de 1985. O Tio Jorge estava no fim da vida. Tinha feito 55 anos no princípio do mês. E tinha estado internado no Hospital de Santa Cruz em Carnaxide, em Lisboa, na sequência de uma insuficiência respiratória grave, que o impedia de dormir deitado. Era o melhor que havia em Portugal. À saída, o médico foi incisivo:
– Um cigarro para o senhor é como uma espada em cima da cabeça suspensa por um fio. Quando o fósforo acende e queima o fio…
Tínhamos regressado ao Porto. Era um fim de tarde longa de verão na Praça Velasquez, nas Antas. Estávamos empoleirados em dois bancos de balcão num jantar sem ritual. Fizera-os desde criança. Era sempre uma aventura sair com o Tio Jorge ao fim do dia, ao lusco fusco, para um lanche, um jantar em restaurante mais fino, uma casa de fados, uma discoteca, até mesmo um cabaret quando a adolescência do sobrinho já permitia estas iniciações.
Ensinara-me a beber cerveja e Campari, as bebidas amargas. Ensinara-me a ir ao futebol. Ali ao lado, no estádio das Antas, vira o meu primeiro jogo ao vivo, um Porto Seixal 6-0. Balizas gigantes! Com balizas daquelas tinha de haver muitos golos. Como era possível, nos jogos que eu ouvia em casa no rádio, haver tantos empates a zero ou vitórias por um golo só? No jogo seguinte percebi. Um Porto Benfica, estava 0-0, mesmo com as balizas gigantes parecia impossível haver golos. Livre direto, Eusébio prepara a bola num ritual que silenciava o estádio. Finalmente arranca e … GOOOOOOOLO gritei eu saltando do apertado lugar de boa vontade que os sócios conhecidos do meu tio se tinham esforçado por me ceder. Vergonha total!!! Sócios irados com o “puto” infiltrado e ingrato. Pedidos de desculpa do meu tio. Encolhi-me todo até ao fim do jogo. No final – Tio Jorge, tenho de passar a ser do Porto para vir aos jogos? Não! Um homem nunca muda de clube de futebol.
Comprara-me as primeiras calças, aos 13 anos, à revelia do meu Pai, escuteiro, que ainda não tinha definido a data em que eu poderia deixar os calções. A relação entre o Tio Jorge e o meu Pai era uma verdadeira categoria semântica, em que um representava a regra e o outro a transgressão. O meu Pai era a regra: deitar cedo e cedo erguer, missa diária às 8h da manhã, refeições a horas, engenheiro eletrotécnico, trabalho regular como funcionário público, terço à noite, Deus, Pátria e Rei como valores absolutos.
O Tio Jorge era a exceção: não se casara, não se formara, trabalhara diletantemente como bancário na baixa do Porto, com competência, mas sem devoção. O seu aquário era muito mais a Arcádia ao fim da tarde. Com alguns amigos, muito dedicados – o Júlio Baganha, o João Póvoas – de genealogia igualmente distinta, mas de posses mais desbaratadas. Nesse aspeto o Tio Jorge era um solteiro de ouro, herdado de muitos bens. As namoradas sucediam-se. Umas bem mais novas, casadoiras, como a Teresa, da família da Trefilaria Portuense, ou a Ema, aristocrata duriense, dos Botelhos de Cheires. Outras maduras, como a Conceição, viúva, com um casal de filhos da minha idade, herdeira das Camionetas dos Carvalhos. Ou a sua amiga Maria José Figueirinhas, igualmente bonita, que lhe sucedeu, numa relação mais ambígua de amizade talvez colorida. Outra igual foi a Luisinha Teixeira de Pascoaes, sobrinha do poeta de Amarante… A mais perene era a médica – por oposição à chilena na categorização da minha avó – Maria Helena de seu nome, que o acompanhou até à morte. Essa sim era um amor ambíguo porque acumulava três estatutos: ex-namorada, amiga permanente e médica de primeira instância.
Fotografia na Arcádia, no princípio dos anos 70, com o Tio Jorge, quarentão, ao lado da irmã Emília, do amigo João Póvoas, do sobrinho Paulo e da amiga namorada Maria José Figueirinhas. Ao fundo um menino empregado que servia o jantar, oferecido aos amigos clientes pelo Senhor João Bastos, o dono da Arcádia.
Depois, quase invariavelmente, aparecia em nossa casa para jantar. O nosso Pai a uma cabeceira, com a nossa Mãe ao lado. O Tio Jorge na outra, com o queijo flamengo na frente para ir comendo ao longo da refeição. Para o nosso Pai o queijo era à sobremesa, com parcimónia e com pão para não ser guloseima, na tradição frugal da família Lencastre. A nossa Mãe já lhe juntara a marmelada, na linha permissiva da família Saavedra. Mas o Tio Jorge era a total rutura. Escrevia poemas em guardanapos de papel enquanto esperava pelo jantar. Inspirava-se num copo de pé várias vezes cheio, no princípio de brandy, depois de moscatel de Favaios, da produção familiar de São Jorge, que agredia menos os primeiros indícios de saúde a fragilizar. Um sagui, que o Tio Miguel lhe trouxe do Recife, e que compartilhou a sua vida e o seu bolso de lapela até morrer de cirrose, empoleirava-se no copo. E, de cabeça para baixo, com a leveza de um trapezista, lambia a lágrima doce do vinho generoso, sem grandes interdições. Admirava Neruda dos seus tempos do Chile. E depois do 25 de abril de 1974 fez uma opção republicana e socialista, chegando mesmo a ser eleito presidente da Junta de Freguesia de Pedroso, nos Carvalhos.
Nenhum de nós sabia muito bem onde dormia o Tio Jorge. Ou mesmo se dormia. Às vezes adormecia em nossa casa, numa das nossas camas. Enquanto isso, deixava a namorada do momento entregue à minha Mãe que, entre fazer-lhe sala e ouvir confidências, tornava aceitável a situação. Uma vez, aí pela uma da manhã, tocou a porta de casa. O meu Pai foi abrir, já de roupão e chinelos. – Apresento-vos o meu “perclaro cunhado” (dizia sempre assim, numa mistura de carinho e de distância). Trazia atrás de si uma trupe de artistas do Teatro Sá da Bandeira, em fim de sessão, para apresentar à família. O meu Pai, homem de salão, recebeu-os na sala grande de jantar e de visitas, serviu moscatel, chamou a mulher e os filhos, e foi-se trocar para retomar a conversa com o António José de Almeida, um artista impecavelmente vestido, de lenço a sair da lapela.
Os anos iam passando. O Tio Jorge, que primeiro engordara um pouco, foi emagrecendo, definhando. Um dia pediu-me para o levar a casa e trazer o carro, não se sentia muito bem para conduzir. E contou-me um segredo. Morava com a Eva, uma fadista que conhecera nos idos tempos de boémia em Lisboa, e que o acompanhava em vida paralela desde aí. Morava em Pedroso, nos Carvalhos. Ambiente de classe média popular, bem diferente dos lustres da Arcádia.
A Tia Eva passou a fazer parte de alguns dos nossos programas noturnos. Contava histórias mirabolantes ao jantar. Era cigana. Mas também era filha do Salazar. Faziam-lhe pedidos para livrar da tropa. – Não sei explicar, comentava-me o Tio Jorge quando deixávamos a Tia Eva em casa e me vinha trazer de volta ao nosso mundo comum. Um dia a Eva pediu-me para a deixar no Forte de São Julião da Barra. Saiu do carro, falou com os seguranças… e entrou!
Dizia-se discípula de Amália, que a conheceu e acarinhou. Uma vez fomos a uma casa de fados do Porto antigo. Na sala encontrou duas fadistas mais jovens que a admiravam e a obrigaram a cantar. E ela cantou! Primeiro a medo, uma voz densa como a da deusa começou a sair daquele corpo já pesado e sem brilho. Imaginei-o roubado nos verdes anos à ribalta, à maquilhagem colorida, ao coquetismo dos homens encantados pela sua voz. O Tio Jorge fora o último deles.
Como compensação tivera a paz material. Sabia viver com pouco dinheiro. O Tio Jorge de vez em quando levava-lhe para casa uma pequena peça antiga que trazia do Fojo, um quadro, um bibelot, que a ligava ao mundo aristocrático do “marido”. E depois chegara a primeira dama da freguesia. Vestia-se melhor, um vestido negro brilhante, punha uma sombra nos olhos, um batom vermelho, para aparecer ao lado do Senhor Presidente nos jantares do partido ou nos arraiais de São João em Pedroso.
Empoleirados no balcão do snack bar, fazíamos contas à vida. Às contas da família. Às casas do Fojo, do Cais Novo, do Douro… A nossa Mãe e o Tio Jorge tinham partilhado os bens de família em papelinhos tirados à sorte de mão fechada. Mas na prática era tudo gerido em conjunto, com o nosso Pai como presença tutelar. E eu, o filho mais velho, como seu primeiro adjunto. Por isso as minhas conversas administrativas com o Tio Jorge eram românticas, depois com o meu Pai tomávamos as decisões a sério. E neste misto de pequena boémia, vida prática e poesia, o Tio Jorge acende despreocupadamente um cigarro. – Tio Jorge, anda a fumar? Confesse-me! Lembra-se do que o médico do Santa Cruz nos disse? – Não faz mal, não te preocupes, temos tudo em ordem, e eu já vivi tudo… Agora o Tio Jorge ensinava-me a morrer.
Porto, junho de 2020
Paulo de Lencastre
Um ótima descrição de quem foi o teu Tio, o teu Pai e a vivência naquela tua casa que nós conhecemos tão bem. Um grande abraço. JP
lindo!